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Sintomas de uma democracia em crise (?): o legado autoritário e sua relação com as violações de direitos no sistema penal brasileiro (Parte 3)

Por Felipe Lazzari da Silveira

O modo como a cultura da violência e o autoritarismo atravessaram nossa história é bastante complexo, contudo, os principais influxos dessas permanências podem ser compreendidos através das explicações fornecidas por alguns autores que tratam de questões vinculadas ao tema. Martins, por exemplo, explicou que assim como um regime autoritário pode fazer uso de dispositivos democráticos para manipular e conseguir governar uma população, conforme ocorreu no caso da Ditadura brasileira (o (falso) discurso dos militares sempre foi no sentido de que o regime de exceção tinha como objetivo assegurar a democracia brasileira), um governo democrático também pode ostentar dispositivos autoritários, na medida em que esses dispositivos permanecem disponíveis para uso ao longo do tempo independente do regime vigente.[1]

Sobre essas permanências, é possível refletir, inclusive, no sentido de que o “Estado autoritário” é latente em todo o “Estado de direito”, necessitando apenas de pequenas brechas para que, em alguns casos, apareça em detrimento dos princípios democráticos.[2] Nessa linha, para entender como os resquícios autoritários se perpetuaram na sociedade brasileira, é necessário desconstruir duas concepções que pairam no senso comum e dificilmente são questionadas. A primeira é a que dá conta de que o tempo é linear, ininterrupto, e a segunda, a de que a violência tem seus efeitos restritos ao momento da agressão.

Na verdade, o tempo não adere a uma concepção linear, uma vez que pode sofrer “fraturas”[3] e também se apresentar em diversas velocidades,[4] sendo que a violência também não respeita tal lógica, uma vez que produz efeitos para além do ato violento, causando graves prejuízos às vítimas e também aos agressores ao longo de suas vidas.[5]

Mas de que forma a sociedade brasileira permitiu que o esse imenso legado autoritário permanecesse arraigado mesmo no contexto democrático? A resposta está no modo como se deu o nosso processo de transição do regime autoritário para a democracia, principalmente no modo como nossa sociedade tratou de alguns problemas do passado após o fim da Ditadura. Silva Filho definiu o processo transicional brasileiro como inacabado, uma vez que tivemos uma lei de anistia que estabeleceu uma espécie de “pacto de silêncio” em nossa sociedade, como se todas as atrocidades cometidas pelo Estado durante o período autoritário pudessem ser esquecidas, realidade que impediu a implementação de algumas medidas referentes a Justiça de Transição essenciais para neutralizar o legado autoritário.[6]

Ao contrário do que ocorreu em outros países que tiveram uma história semelhante, aqui as Forças Armadas não disponibilizaram documentos que poderiam revelar informações importantes sobre o que ocorreu durante o regime militar, e também não foram procedidos os julgamentos e a responsabilização dos agentes que cometeram crimes contra a humanidade, realidade que acabou suprimindo o direito à verdade, à memória e a justiça da sociedade brasileira que, diante do desconhecimento, em grande parte ainda pensa que o golpe militar de 1964 foi um “mal necessário” e não uma afronta ao Estado de direito.

A incompletude do processo transicional brasileiro, dentre outros fatores, também impediu que fossem realizadas efetivas reformas nas instituições de segurança pública e no Judiciário. Em relação às instituições de segurança pública, é preciso considerar que suas estruturas não foram alteradas pela Constituição de 1988 (o sistema de segurança interno permaneceu praticamente idêntico ao utilizado pelo regime militar) e que muitos de seus agentes que cometeram crimes contra a humanidade no período autoritário, além de não terem sido responsabilizados, seguiram ocupando cargos importantes após a redemocratização do país.

Ora, na medida em que os aspectos estruturais dessas instituições utilizadas pelos governos autoritários para manter o poder através do cometimento de crimes graves não foram alterados, e que os agentes criminosos seguiram exercendo suas funções e contaminando os novos agentes, evidentemente o padrão de atuação dessas instituições não restou modificado. Considerando as origens autoritárias do pensamento jurídico brasileiro, bem como que o Judiciário historicamente sempre serviu aos interesses das elites,[7] sendo oportuno registrar, inclusive, que muitos magistrados foram muito “úteis” aos governos autoritários, é evidente que a instituição  também deveria ter sido reformada após a redemocratização do país.

É preciso reconhecer que a Constituição de 1988 modificou bastante o Judiciário, sobretudo tornando-o mais independente, entretanto, por tê-lo deixado praticamente livre de qualquer controle externo (é preciso considerar que a ocupação dos cargos de desembargadores, de ministros e de gestores que atuam junto aos tribunais, dentre outros, não dependem de critérios objetivos, mas sim de arranjos ou indicações políticas, sem qualquer tipo de controle por parte da sociedade) permitiu que alguns problemas oriundos do passado, que poderiam ter sido resolvidos por meio de uma reforma, seguissem maculando a instituição.

Sem uma reforma estrutural efetiva, naturalmente o simples advento da Lei Maior não foi suficiente para impedir que muitos magistrados continuem atuando em descompasso com os princípios norteadores do sistema processual penal acusatório, atentando contra a democracia ao exercer suas atribuições de forma autoritária.

Resta claro que os resquícios autoritários arraigados nas instituições de segurança pública e no Judiciário impedem que a democracia brasileira se estabeleça de forma plena,[8] uma vez que contribuem para a continuidade das violações de direitos fundamentais, que são elementos substanciais de um regime democrático.[9]

É possível concluir, então, que o legado autoritário ainda presente nas instituições de segurança pública e no Judiciário acentua a violência do sistema penal brasileiro, tornando o problema ainda mais complexo, tendo em vista que, no contexto atual, a redução dos níveis de violações de direitos fundamentais não depende apenas de medidas como a redução da injustiça social e o “ajuste” dos mecanismos de controle da criminalidade ou do sistema de justiça, mas, principalmente, de uma transformação cultural, de uma radical mudança de mentalidade.

Para tanto, a sociedade brasileira precisa conhecer o seu passado, pois somente estando consciente das origens dos problemas atuais poderá neutralizar a “herança” deixada pelos períodos autoritários e começar a projetar um futuro realmente democrático (e nesse caminho ainda deverá lutar constantemente contra as dificuldades impostas pelo contexto contemporâneo marcado pela globalização), caso contrário, restará condenada a repetir as barbáries do passado.

__________

[1] MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. The Brazilians Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 106-107.

[2] SULOCKI, Victória-Amália de Sulocki. Autoritarismos presentes: Biopolítica, estado de exceção e poder soberano. In: Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Org:PRADO, Gerado; Malan, DIOGO. Col. Matrizes autoritárias do processo penal brasileiro. N. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 109.

[3] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 37.

[4] OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999. p. 37-38.

[5] RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. (In)justiça, violência e memória – O que se oculta pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Org.). Justiça de transição nas Américas. Olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 85.

[6] Ver SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Memória e reconciliação nacional: o impasse da anistia na inacabada transição democrática brasileira. In: PAYNE, Leigh; ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.). A Anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin America Centrem 2011. Disponível em: <http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/2011livro_OXFORD.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2013.

[7] Ver ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. Dissertação de mestrado. USP, 2010. Disponível aqui. Acesso em: 30 mai 2015.

[8] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. Um estudo comparativo dos sistemas regionais europeus, interamericano e africano. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 123-124.

[9] Sobre os Direitos Fundamentais na condição de elementos substanciais da democracia ver FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias. La ley del más débil. Madrid: Trotta, 2010. p. 51-52.

FelipeLazzari

Felipe Lazzari da Silveira

Advogado. Doutorando e Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Processual Penal.

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