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Um crime canibal em 1920, relatado por um médico

Um crime canibal em 1920, relatado por um médico

O curioso ofício de Historiador muitas vezes pode proporcionar o prazer de se deparar com um caso antigo, inexplorado. Em minhas leituras recentes, buscando esquadrinhar o papel social dos profissionais médicos nas primeiras décadas do século XX, tomei contato com a peculiar obra de Sebastião M. Barroso, O Médico nas Grandezas e Misérias Humanas. Terceira edição de um livro primeiramente publicado em 1934, sob igualmente pomposo título (“O Médico na Sciencia, na Profissão, na Sociedade”), o então escritor do periódico O Brazil Médico – sim, esta era a grafia antiga, ao longo deste artigo teremos demais estranhamentos ortográficos – relata suas experiências como aprendiz medicinal desde os tempos universitários, posteriormente adentrando os casos mais curiosos de sua carreira.

Talvez um dos capítulos mais interessantes do livro, o penúltimo segmento de seus escritos é composto por aquilo que o autor chama de “Grandes Tragédias”: histórias de crimes e de indivíduos “anormaes”. Dr. Barroso, diplomado na virada do século XIX ao XX, atuou como diligente discípulo do ideário higienista que regeu o país após a reforma propulsionada por Oswaldo Cruz: a higiene era princípio salvador da nação brasileira, sendo responsável tanto pela prevenção de doenças quanto pela proliferação de novas práticas sociais. Lembram-se da Revolta da Vacina? Justamente teve início nos primeiros anos de 1900, impondo práticas médicas e sociais “milagrosas” a uma população ainda desavisada.

Nosso autor, nos anos de 1920, fora designado como Chefe de Saneamento Rural por Carlos Chagas, realizando também diversas iniciativas de propaganda em relação à Saúde Pública. Em sua narrativa ligeiramente confusa quanto à cronologia, podemos inferir que tal período abriga seus relatos criminais. Revelo aqui, então, “Crime Macabro”, o caso de homicídio de Juliana (sem sobrenome indicado). Ela e seu assassino, assim como os demais fichados por Barroso, até onde pude constatar, encontram-se esquecidos pela historiografia criminalística. Sejam personagens reais cujos nomes foram editados ou censurados, sejam ficção elaborada pelo autor, o teor narrativo é interessantíssimo como ferramenta de mentalidade histórica.

Em uma zona rural baiana, vivia a moça, “cabrocha clara, de seus 18 annos, bem desenvolvida de corpo”. Notemos o quão curiosa é a forma como casos criminais, ao menos desde os de Jack Estripador, insistem na elaboração sedutora de características das vítimas de assassinos sádicos. A descrição gilberto-freyriana prossegue, ressaltando seu corpo de “exuberante carnadura, desempenada de busto, seios erectos, quadris amplos, nariz e boca bem talhados, dentes brilhantes, olhos vivos, ella era o iman de todas as attenções”. O autor, quase como numa narrativa gore termina o parágrafo constatando que “tudo, porém, tem seu tempo e seu fim”. Ou seja, fomos apresentados às carnes da donzela para que, posteriormente, fossem justamente dilaceradas.

Juliana era alvo de uma miríade de pretendentes, mas decidiu casar-se com José Ferreira, funcionário da mesma fazenda em que trabalhava. No período aproximado de um ano, ambos noivam, oficializam a união, adquirem uma modesta moradia nos arredores e tornam-se pais de um bebezinho de três meses. O casal opta por continuar trabalhando na fazenda local, simultaneamente aos seus cultivos domésticos.

Certo dia, retornando ao lar após o expediente, José encontra as portas de casa trancadas e apenas o choro de seu filho a ecoar. As tentativas fracassadas de chamar pela esposa fazem com que arrombe a porta da cozinha e constate que o bebê, faminto, havia sido abandonado sozinho. Lembrando-se de que era dia em que Juliana buscava fubá de milho na fazenda, decide retornar acompanhado pela criança. Ninguém soube informar o paradeiro da jovem, que já havia tomado seu saco de fubá e partido havia horas. Buscas amadoras têm início e são complementadas por ajuda policial logo que um morador encontra uma alça intestinal, pendente sobre um galho de árvore. Há sangue pelas folhas e um retalho de tecido do vestido de Juliana, usado naquele mesmo dia.

Sebastião nos diz que, “a certo ponto, já subindo o morro, quanto era menos denso o matto e os troncos das arvores se isolavam, foi encontrado, encostado ao pé de um delles, o tronco de uma mulher, sem braços, sem pernas, até sem os seios, cortados cerce às costellas, esvasiado dos orgãos visceraes; somente o arcaboiço vasio.” Também faltava-lhe a cabeça… mas, visto que todos admiravam o corpo e pele de Juliana, puderam identificar sua silhueta, mesmo que ensanguentada e destruída.

O médico, que já estava ciente dos rumores circulando pela cidadezinha, por acaso é chamado pela proprietária a fazer sua ronda de pacientes no povoado da fazenda. Dentre os enfermos, um lhe chama a atenção: um epilético, chamado Benedicto, que delira em febre por uma intoxicação alimentar. Indagado, insiste em repetir “Os miúdos?… Já comi!”. Também é informado que, na madrugada daquele dia, o doente foi interrompido na cozinha, “a cozinhar umas coisas” e “mais tarde disparou a vomitar”. Ao buscarem a panela, “o que se achava nella – disse a cozinheira que a lavou – não eram hervas, mas, uma mistura com fubá de milho, miudos – figado, buxo, bofes, etc”.

Dr. Sebastião Barroso, tomando ares de Sherlock Holmes, nos familiariza com o “gênio irregular” de Benedicto, que, segundo moradores, tinha “prazer em judiar dos animais”. Teria, inclusive, realizado vivissecções em alguns, a fim de vê-los por dentro, a pulsar o coração. Como se não bastasse o perfil praticamente psicopata do suspeito, constatou-se que era um dos tais pretendentes de Juliana e que teria dito “ou casas comigo ou como-te os miudos” a ela. Sumido há um ano, havia retornado fazia oito dias à fazenda. O médico conclui sua acusação exibindo toda a sensibilidade lexical digna à medicina da época, num diálogo com o sub-delegado local:

“Compreende que só um tarado, um degenerado, um anormal, chegaria aos requintes desse crime? Esse homem é um epileptico, um impulsivo; empolgado pela auto-suggestão perenne e constante de que Juliana deveria ser sua ou deveria elle comer-lhe os miudos, quem sabe si, em momento de exaltação intima, poz em pratica o pensamento que o obsedava como ordem terminante?”

Sua suspeita era certeira. Há um ano, Benedicto havia desaparecido da cidade por conta do noivado de Juliana, e escolhera retornar recentemente devido à sua obsessão incurável pela moça. Armou-lhe uma emboscada próxima a um vão vizinho à ponte local. Sua primeira tentativa havia sido falha, pois Juliana carregava o filho nos braços e, apesar de ameaçada pelo ex-pretendente, não levou o insulto a sério. Dois dias mais tarde, no entanto, necessitando ter os braços livres para carregar sacos de fubá, estava desacompanhada e não pôde incitar a piedade de seu assassino.

A jovem foi golpeada por um “facão pernambucano”, desmembrada e desovada pela região. Seu algoz apenas guardou-lhe a mão, posteriormente mantida na salmoura, para que assim pudesse guardar para sempre aquilo que lhe foi roubado por outro pretendente. Benedicto foi condenado a trinta anos de prisão, “durante o julgamento, conservou sempre a maior calma e nunca se declarou arrependido”. Disse não passar ser um instrumento de um decreto sobrenatural que lhe fora incumbido. O lúgubre relato termina truculento, exaltando a medicina e condenando a justiça dos Homens das Leis:

“A medicina apontou o criminoso, mas fez as seguintes ponderações: sem duvida individuos taes devem ser segregados como perigosos. Mas não pura e simplesmente segregados e sim assistidos na sua anomalia. Não é à vindicta mas à protecção do Estado que elles devem ser entregues - protecção em beneficio da sociedade tanto quanto delles proprios, particulas que são dessa mesma sociedade (...). Si a medicina governasse os povos, mui diverso seria o conceito da maldade. Na quasi totalidade, os artigos do codigo penal seriam transformados em prescripções therapeuticas preventivas e curadoras. Juntas medicas em vez de tribunaes. Dispensarios, hospitais e manicomios em lugar de presidios, penitenciarias e correições. Instrucção e educação a dispensarem leis coercitivas.”

Ao longe podemos ouvir o farfalhar Foucaultiano deliciando-se ao ler tal passagem… Aos olhos de certos médicos da virada do século, a Medicina era arte tão profundamente indissociável do progresso humano que poderia reger uma sociedade na sua totalidade, substituindo as “falhas” leis humanas pelas “indiscutíveis” leis científico-medicinais.

Não apedrejemos Sebastião Barroso por sua declaração, claro! , seria anacrônico… mas tal caso e seu desfecho filosófico levantam questões bastante interessantes. Lembremos dos experimentos médicos nazistas naquela mesma década, suas justificativas, seus impactos atuais… Apesar da tentativa, o próprio início do século XX, nos mostrou que não há área livre da eterna (e subjetiva) discussão (bio)ética. Nem mesmo a Medicina.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Sebastião M. O Médico nas Grandezas e Misérias Humanas. São Paulo: Comp. Melhoramentos de São Paulo, 1937.

SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Brasilianas, danças características: reflexões sobre brasilidade e miscigenação a partir de partituras musicais (Rio de Janeiro, fim do século XIX e início do século XX). Rio de Janeiro: Revista Maracanan, UERJ, Dez. 2014. Disponível aqui (apesar do título, o artigo explora a atuação médica e como compositor de Sebastião Barroso).


P.s: Uma recomendação de leitura, aos interessados pelo tema do canibalismo, há um capítulo inteiro dedicado à questão: ROSSI, Paolo. Comer: Necessidade, Desejo, Obsessão. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

Vitor da Matta Vivolo

Historiador. Mestrando em História. Pesquisador com ênfase no Século XIX e Belle Époque.

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