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Configuração de crime eleitoral por uso de culto religioso

Configuração de crime eleitoral por uso de culto religioso

No Brasil, religião e política são dois assuntos debatidos exaustivamente pelas redes sociais, mídias e plataformas políticas. Muitos partidos, inclusive, trazem em seus estatutos a identificação religiosa como, por exemplo, PSC 20 (Partido Social Cristão), PTC 36 (Partido Trabalhista Cristão), entre outros. 

Na atuação no Congresso Nacional, estes partidos são denominados como “bancada evangélica”, defensores da família e de preceitos religiosos, influenciando diretamente nas decisões políticas nacionais.

O aumento significativo de representantes da bancada evangélica ou religiosa – independente de qual religião praticada – demonstra que existe um trabalho forte e organizado no aperfeiçoamento do discurso político dentro dos templos e igrejas.

O fortalecimento político com fundamento religioso não é uma estratégia exclusiva dos partidos brasileiros. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump contratou sua assessora espiritual para um cargo dentro da Casa Branca, com foco exclusivo no fortalecimento das bases mais conservadoras na reeleição de 2020, conforme notícia publicada pelo site El País.    

Fato é que, no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, constantemente recebe denúncias de supostos abusos de poder e de propaganda eleitoral irregular praticados por religiosos em favor de candidatos. A propaganda irregular pode gerar abuso de poder político, de autoridade ou abuso de poder econômico. 

No livro “Manual de Prática Eleitoral”, do Professor Francisco Dirceu BARROS (Manual de prática eleitoral. 4. ed. Leme – SP: JH Mizuno, 2020, p. 185), este aborda o assunto com maestria, vejamos: 

Dependendo do caso concreto, a propaganda irregular se torna um instrumento tão lesivo à democracia, que é possível até desiquilibrar a igualdade de condições dos candidatos à disputa do pleito e ser um fator decisivo para influenciar o resultado geral da eleição, nestes casos, há evidente abuso de poder, que deve ser combatido com a AIJE ou AIME.   

Em recente Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 7191 – BA, do Ministro Relator Joaquim Benedito de Barbosa Gomes, identificou abuso de poder tanto em relação ao beneficiário, como em relação ao Autor. Salientou ainda o eminente Ministro que: “porquanto o que se busca preservar é a lisura do pleito”.

Em julgado semelhante colhido do Recurso Ordinário 5370-03, da Ministra Relatora Rosa Weber, demonstra claramente a necessidade da laicidade estatal e a proteção ao livre exercício do voto consciente:

A utilização do discurso religioso como elemento propulsor de candidaturas, infundindo a orientação política adotada por líderes religiosos – personagens centrais carismáticos que exercem fascinação e imprimem confiança em seus seguidores -, a tutelar a escolha política dos fiéis, induzindo o voto não somente pela consciência pública, mas, primordialmente, pelo temor reverencial, não se coaduna com a própria laicidade que informa o Estado Brasileiro   

Neste julgado emblemático de procedência do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais – TRE/MG, fora analisado o pitoresco fato de um grande evento religioso em benefício de candidaturas às vésperas do pleito das Eleições de 2014.

A Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) foram ajuizadas por candidato não eleito ao cargo de deputado estadual pelo PTB nas eleições de 2014, com alegação de prática de abuso de poder econômico e de autoridade, e uso indevido de meios de comunicação social, configurados pela Ministra em seu relatório. Veja na íntegra:

Eleições 2014. Recurso ordinário. AIJE e AIME julgadas conjuntamente. Abuso do poder econômico. Utilização de grandioso evento religioso em benefício de candidaturas às vésperas do pleito. Pedido expresso de votos. Procedência no TRE/MG. Desprovimento […] 1. Contra acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE/MG) pelo qual julgados procedentes os pedidos veiculados em ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) e ação de impugnação de mandato eletivo (AIME) – ajuizada por candidato não eleito ao cargo de Deputado Estadual pelo PTB nas eleições de 2014, à alegação da prática de abuso do poder econômico e de autoridade e de uso indevido dos meios de comunicação social, em que declarada a inelegibilidade dos investigados por oito anos e cassados os mandatos dos candidatos eleitos – interpuseram recurso ordinário Franklin Roberto de Lima Sousa, Márcio José Machado de Oliveira (eleitos Deputado Federal e Deputado Estadual, respectivamente, no pleito de 2014) e Valdemiro Santiago de Oliveira (líder da Igreja Mundial do Poder de Deus), manejado, ainda, recurso especial pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B) – Estadual. 2. Consta da inicial que os recorrentes teriam se utilizado de grandioso evento religioso amplamente divulgado para impulsionar as candidaturas de Márcio José Machado de Oliveira e Franklin Roberto de Lima Sousa, ocasião em que teria havido pedido expresso de votos por parte do condutor da celebração – o autodenominado ‘Apóstolo Valdemiro Santiago’ -, intitulada ‘Concentração de Poder e Milagres’, realizada no dia 4 de outubro de 2014, a menos de 24 horas da eleição, em local de amplo acesso ao público – Praça da Estação, em Belo Horizonte/MG, com distribuição de material de campanha. Do recurso interposto pelo PC do B na condição de terceiro interveniente […] Da imputação de abuso de autoridade religiosa 12. O atual debate sobre os limites da interferência de movimentos religiosos no âmbito do eleitorado, com a possível quebra da legitimidade do pleito, é desafiador dentro de uma sociedade pluralista. A influência da religião na política e, na linha inversa, da política na religião, é via de mão dupla que se retroalimenta, conhecidamente indissociável em diversas culturas. 13. Sem a emissão de juízo de valor sobre as diferentes convicções religiosas – direito fundamental protegido pela Constituição Federal – a exercerem influência sobre as opções políticas do indivíduo e, em última análise, da comunidade a que pertence, é inegável que declarações públicas de apoio ou predileção a determinada candidatura estão resguardadas pela liberdade de manifestação assegurada constitucionalmente. Além disso, tendem os indivíduos a um alinhamento natural a candidatos oriundos da fé professada. 14. A utilização do discurso religioso como elemento propulsor de candidaturas, infundindo a orientação política adotada por líderes religiosos – personagens centrais carismáticos que exercem fascinação e imprimem confiança em seus seguidores -, a tutelar a escolha política dos fiéis, induzindo o voto não somente pela consciência pública, mas, primordialmente, pelo temor reverencial, não se coaduna com a própria laicidade que informa o Estado Brasileiro. 15. Diante desse cenário é que se torna imperioso perscrutar em que extensão cidadãos são compelidos a apoiar determinadas candidaturas a partir da estipulação de líderes religiosos – os quais, por vezes, vinculam essa escolha à própria vontade soberana de Deus -, em cerceio à liberdade de escolha do eleitor, de modo a interferir, em larga escala, na isonomia entre os candidatos no pleito, enfraquecendo o processo democrático. 16. A reiterada conclamação aos fiéis durante as celebrações religiosas, por seus líderes, para que suportem determinada campanha, cientes do seu poder de influência sobre a tomada de decisões de seus seguidores, é conduta que merece detido exame pela Justiça Eleitoral, considerada a nobre missão de que investida, pela Carta Magna, quanto ao resguardo da legitimidade do pleito. 17. A modificação do prisma histórico-social em que se concretiza a aplicação da norma torna imperiosa uma releitura do conceito de ‘autoridade’, à luz da Carta Magna e da teleologia subjacente à investigação judicial eleitoral, a revelar de todo inadequada interpretação da expressão que afaste do alcance da norma situações fáticas caracterizadoras de abuso de poder em seus mais diversos matizes – as quais manifestam idênticas e nefastas consequências -, sabido que a alteração semântica dos preceitos normativos deve, tanto quanto possível, acompanhar a dinâmica da vida. 18. Porque insofismável o poder de influência e persuasão dos membros de comunidades religiosas – sejam eles sacerdotes, diáconos, pastores, padres etc -, a extrapolação dessa ascendência sobre os fiéis deve ser enquadrada como abuso de autoridade – tipificado nos termos do art. 22, XII, da LC nº 64/1990, que veio a regulamentar o art. 14, § 9º, da CF – e ser sancionada como tal. 19. Nessa quadra, revelam-se passíveis, a princípio, de configuração do abuso de autoridade – considerada a liderança exercida e a possibilidade de interpretação ampla do conceito – os atos emanados de expoentes religiosos que subtraiam, do âmbito de incidência da norma, situações atentatórias aos bens jurídicos tutelados, a saber, a normalidade e a legitimidade das eleições e a liberdade de voto (art. 19 da LC nº 64/1990). 20. Todavia, sem embargo da pungente discussão sobre o tema, a se realizar em momento oportuno, a solução da controvérsia que se põe na espécie prescinde desse debate, uma vez incontroversa a utilização, a favor da candidatura dos recorrentes, de sofisticada estrutura de evento religioso de grande proporção, à véspera do pleito, que contou com shows e performances artísticas, cujo dispêndio econômico foi estimado em R$ 929.980,00 (novecentos e vinte e nove mil e novecentos e oitenta reais) – valores não declarados em prestação de contas e integralmente custeados pela Igreja Mundial Poder de Deus -, cujas circunstâncias indicam a configuração do abuso do poder econômico. […] 

De fato, é crescente a utilização dos púlpitos religiosos para promoção de candidatos com base religiosa. Ainda que a religião seja algo positivo, protegido pela Constituição e difundido por todos os cantos do país, das mais diversas crenças praticadas, a justiça eleitoral permanece atenta ao uso desenfreado e vedado pela legislação vigente.

Ter candidatos com fundamentos religiosos é uma virtude procurada por milhares de eleitores. No entanto, tantos os candidatos, como os eleitores e seus líderes religiosos, precisam saber separar ato religioso de ato político. A empolgação de um líder religioso em um templo ou igreja, com microfone nas mãos, poderá causar danos irreversíveis à candidatura ou até no mandato eletivo com possível impugnação.

Todo o cuidado é necessário para não jogar fora uma campanha política. Depois de feito o estrago, não há oração que mude uma sentença.       


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