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Direito Penal Juvenil: a doutrina da etapa penal tutelar


Por Ingrid Bays


Conforme prometido, nesta semana irei abordar a segunda etapa dentre aquelas que dividem a história do direito penal juvenil no Brasil: a de caráter penal tutelar (também denominada doutrina da situação irregular), que surge nos Estados Unidos, no início do século XX, a partir da intensa repulsa moral decorrente do cenário promíscuo presente no resultado de estarem inseridos maiores e menores nos mesmos estabelecimentos prisionais (SARAIVA, 2005, p. 18).

É com o advento da Lei Federal nº 4.242 de 1921, da criação do primeiro Juizado de Menores em 1923 e do primeiro Código de Menores em 1927 que se inicia pontualmente a etapa tutelar no direito brasileiro. Aliás, foi, curiosamente, durante o período de ditadura política que se consolidou o modelo tutelar no Brasil, momento no qual se elaborou a Política Nacional do Bem-Estar do Menor e a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM (SPOSATO, 2013, p. 84).

A FUNABEM surgiu com a aprovação da Lei Federal nº 4.513/64 em substituição ao SAM (Serviço de Atendimento ao Menor) e, conforme previa a referida Lei, tinha como objetivo formular e implantar a política nacional do bem-estar do menor, mediante o estudo do problema e planejamento das soluções, a orientação, coordenação e fiscalização das entidades que executariam essa política. Quanto ao SAM, criado em 1942 pelo governo de Getúlio Vargas, explicita João Batista da Costa SARAIVA (2005, p. 42/43) que

“tratava-se o SAM, nas palavras de Antônio Carlos Gomes da Costa, de um órgão de Ministério da Justiça que funcionava como um equivalente do Sistema Penitenciário para a população menor de idade. A orientação do SAM é, antes de tudo, correicional-repressiva, e seu sistema baseava-se em internatos (reformatórios e casas de correção) para adolescentes autores de infração penal e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para os menores carentes e abandonados”.

Ademais, existem cinco características principais que esboçam de modo geral a etapa tutelar: a) a negação de sua natureza penal; b) a indeterminação das medidas aplicáveis; c) no aspecto processual, a ausência de garantias jurídicas; d) amplo arbítrio judicial; e e) recusa ao critério da imputabilidade (SPOSATO, 2013, p. 84). Ou seja, foi criada uma etapa de supressão de garantias já conquistadas (como o princípio da legalidade, por exemplo). Utilizava-se uma suposta proteção ao menor para ignorar qualquer sistema de garantias existente.

Ao dissertar a respeito do tema, Martha de Toledo MACHADO (2003, p. 37) destaca que apesar do avanço percebido em razão da preocupação com a retirada dos menores das prisões de adultos, nesta etapa ocorreu uma confusão conceitual do combate à criminalidade juvenil com o tratamento do problema social concernente à infância desamparada. Além disso, era conferido ao Poder Público um veredito final sobre quem fazia jus ou não de ser identificado como pessoa em situação marginal, ocasionando, de certa forma, um paternalismo que se mostrava descabido (LAMENZA, 2011, p. 17):

“A abrangência e o protecionismo do Código de Menores, talvez motivados pela ânsia de resolver o problema do menor no país, acabaram gerando situações marcadas pela invasão de privacidade, em um sistema quase inquisitivo. O menor pertencente a uma classe social mais humilde estava, por força de lei, sujeito ao arbítrio da autoridade – quase sempre o policial encarregado das rondas” (JESUS, 2006, p. 45).

Então, na doutrina da situação irregular, ocorreu um emaranhado de confusões: atribuía-se ao juiz a deliberação acerca de decidir o que seria melhor para a criança, sendo que tal atribuição resultou em um estigma por parte da sociedade, que concluía que um menor abandonado era consequentemente um menor infrator. Nessa ocasião houve a forte criminalização da pobreza e supressão de garantias, bem como a justificativa para a expressão “menores em situação irregular” (SOUZA, 2013). A etapa em questão foi, sem sombra de dúvidas, fundada e mantida com base no binômio carência e delinquência, visando notadamente a criminalização da pobreza e a expressa tendência à institucionalização. O artigo 2º do Código de Menores (Lei nº 6.697/79) conceituava quem eram os menores que poderiam ser considerados em situação irregular:

Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II – vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III – em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI – autor de infração penal.

Em conclusão, pode-se afirmar que a etapa tutelar foi marcada por um acentuado assistencialismo que consistia em conceitos vagos e abstratos, sujeitando o inimputável a sanções até mesmo mais severas que dos adultos, incluindo na “situação irregular” tanto o menor abandonado quanto o menor infrator, o que ocorreu até a promulgação da Constituição Federal de 1988.


REFERÊNCIAS

JESUS, Maurício Neves. Adolescente em conflito com a lei: prevenção e proteção integral. São Paulo: Servanda, 2006.

LAMENZA, Francismar. Os direitos fundamentais da criança e do adolescente e a discricionariedade do Estado. São Paulo: Minha Editora, 2011.

MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. São Paulo: Manole, 2003.

SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SOUZA, Tatiana Sampaio de. A doutrina da proteção integral e a possibilidade de um direito penal juvenil. Disponível aqui.

SPOSATO, Karyna Batista. Direito penal de adolescentes: elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva, 2013.

Ingrid

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