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A cultura do estupro

A cultura do estupro. Nas últimas semanas tive a oportunidade de trabalhar com os meus alunos sobre o tema da coluna de hoje. Isso porque leciono em cursos de aprendizagem que são legislados pela Lei nº 10.097/2000 e regulamentados pelo Decreto nº 5598 de 1º de dezembro de 2005 e, além disso, pela Portaria MTE nº 723/12, a qual, em seu artigo 10, especifica diretrizes gerais, curriculares e conteúdos de formação humana e científica devidamente contextualizados. No último caso, o rol prevê, entre outras, a questão da diversidade cultural brasileira (inciso III, alínea “c”) e os direitos humanos, com enfoque no respeito à orientação sexual, raça, etnia, idade, credo religioso ou opinião política (inciso III, alínea “f”).

Posso afirmar, de início, que trabalhar com os jovens renova esperanças que luto para que não sejam adormecidas. Temas como esse geram debates que permitem a formação do senso crítico e que demonstram que nossos jovens não estão alheios aos temas relevantes e atuais, pois estão cientes dos problemas que permeiam na comunidade.

E nesse sentido, frise-se que a perspectiva de gênero está incluída na deliberação do conteúdo dos direitos humanos e foi fundamental para assentir a inserção do feminismo no campo do direito, inclusive em razão das mulheres adentrarem em um “contexto de especificação dos sujeitos de direitos”, já que o tratamento histórico dado às mulheres as excluía das discussões de processos políticos, revolucionários e de busca por direitos (GONÇALVES, 2013, p. 84-87). Por isso, é preciso que seja realizado um apanhado histórico sobre o papel da mulher na sociedade desde os tempos mais remotos até os dias atuais, para que seja plenamente possível entender a questão cultural envolvida nesse processo.

Nesse transcurso, surgiu um importante questionamento sobre o porquê da utilização da expressão “cultura” do estupro, já que em um primeiro momento a impressão que se possui de algo cultural seria justamente algo aceitável, algo transmitido, o que, segundo o aluno, não faria sentido, já que as pessoas notadamente não enxergam o estupro como algo que deva ser tolerado. E tal indagação, sob algum ponto de vista, é absolutamente coerente. Outrossim, TIBURI (2016) auxilia no esclarecimento:

Um estupro é incomparável e pode ser aniquilador de uma subjetividade, de um corpo, de uma vida.  Por isso falar que ele é um metáfora pode parecer grosseiro, mas em um nível o horror do estupro expressa muito outro horrores. Os horrores da própria cultura que é capaz de produzir subjetividades capazes desse crime.

É inevitável afirmar que nossa cultura ainda é patriarcal e machista e isso acaba dando ênfase na expressão “cultura do estupro”, nitidamente pelas atitudes demonstradas ao lidar com esse delito. Ao tornarmos, por exemplo, o estupro apenas uma questão de polícia, não estaremos nos direcionando a uma possível resolução do problema, pois sem sombra de dúvidas é imperioso lutar pela mudança da mentalidade das pessoas, principalmente nas que ainda insistem em analisar e julgar as vítimas como se essas influenciassem no crime (e o desesperador é que isso vem ocorrendo nos próprios órgãos do judiciário, conforme demonstrado por notícias recentes).

Ora, são essas atitudes que justificam a expressão “cultura do estupro”, pois há muito tempo essas ações vêm sendo legitimadas inclusive pelo Estado, desde a exposição da vítima em uma Delegacia de Polícia que não possui condições de atende-la dignamente e a faz sentir culpa pelo acontecimento, questionando antes de qualquer coisa qual a sua vestimenta… (não podemos fingir que isso é uma exceção, pois infelizmente não é). Necessitamos de humanização nesses atendimentos. Sobre o assunto, expõe BIANCHINI (2013, p. 282):

Para além das normas legais que trazem a igualdade de tratamento entre homens e mulheres, dos instrumentos, das ações e dos programas assistenciais, bem como da prevenção e repressão dos delitos contra a dignidade sexual, ainda se faz necessária uma importante atitude, agora decorrente de um esforço individual: mudança interna de valores socioculturais, que leve à erradicação do sistema patriarcal, responsável direto pela opressão feminina/dominação masculina. O esforço de mudança que alcance cada um pode levar a uma alteração da forma de viver em sociedade. “Enquanto não houver uma mudança de mentalidade, o patriarcalismo jurídico continuará a permear as relações entre mulheres e sistema jurídico.”

Precisamos avançar e na minha singela opinião isso não se consagra com leis mais severas, justamente por ser algo cultural e entranhado em nosso pensamento, com raízes mais profundas. Mas o fato de discutirmos esse tema, ou seja, rompermos com o silêncio, deixando de achar que falar sobre tal assunto é um tabu, certamente já é um começo promissor. Que nossa luta atual possa fazer com que os jovens erradiquem as trágicas estatísticas que existem hoje, pois o debate e a compreensão geram a mudança.


REFERÊNCIAS

BIANCHINI, Alice. A mulher e os crimes contra a dignidade sexual. In: FERRAZ, Carolina Valença [et al.]. Manual dos Direitos da Mulher. São Paulo: Saraiva: 2013.

GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direitos humanos das mulheres e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2013.

TIBURI, Márcia. Estupro em potencial – para pensar a cultura do estupro. Disponível aqui.

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