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O STF e suas decisões históricas: o estado de inocência


Por Diógenes V. Hassan Ribeiro


Na última década o Supremo Tribunal Federal, o tribunal que ocupa o ápice da pirâmide do poder judiciário do Brasil, que é muito mais uma corte constitucional, embora não possa ser caracterizado como essencialmente uma corte dessa natureza, produziu muitas decisões históricas, algumas delas com as quais eu, humilde e modestamente, do “alto” da minha insignificância, não concordei.

Não concordei, por exemplo, com a decisão proferida na ação que tratava da transparência (SS 3902 – AgRsegundo – SP, 2011), em que o STF decidiu que o direito fundamental do inciso XXXIII do art. 5o prevalecia sobre o direito fundamental do inciso X. Aliás, a interpretação atribuída pelo STF desconsiderou completamente o direito à privacidade, ou seja, eliminou, excluiu mesmo, da Constituição o direito à proteção da privacidade. Todos sabemos que o núcleo essencial do direito, na aparente colisão de direitos fundamentais, não pode ser eliminado, embora outro direito deva prevalecer num determinado contexto. Essa seria já um modelo de interpretação dogmática do direito constitucional.

A alternativa, simples, para manter incólume o direito à privacidade seria proibir que os nomes dos titulares de cargos públicos fossem divulgados e que todos os valores percebidos por um servidor constassem de apenas uma matrícula, detalhando as diversas espécies remunerativas, de modo que poderia haver o controle da cidadania e, ainda, eventual fiscalização, sem exposição, indevida, do nome do titular do cargo público. Mas isso, evidentemente, como não atingia a cidadania em geral, apenas a minoria constituída dos servidores públicos, não sensibilizou a ninguém, sendo vista, qualquer manifestação contrária, como pretensão corporativa que visava a proteção de interesses eventualmente espúrios.

Outra decisão proferida pelo STF foi a que declarou inconstitucional a Emenda Constitucional n62/2009, que permitia regime especial de pagamento e de parcelamento dos precatórios. A respeito dessa decisão, aliás, cabe lembrar que, no ano passado, quando esteve no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em palestra proferida, o Ministro Gilmar Mendes reconheceu e admitiu que o STF produziu um erro histórico e inapelável com essa decisão porque, mal ou bem, os estados-membros estavam pagando os precatórios. Depois da decisão, contudo, os Estados passaram a acumular as dívidas, sem maior compromisso.

Os estados-membros, além de se constituírem a parte processual com maior número de ações judiciais em tramitação, utilizando intensamente a estrutura material e de recursos humanos do Judiciário e assim inviabilizando aos cidadãos a utilidade com maior intensidade, também são, perdoem-me a expressão, os maiores caloteiros da nação. Acumulam dívidas que perduram em seus passivos por vezes por gerações, vindo a ser satisfeitas somente aos herdeiros dos credores.

A propósito disso, recordo que, há muitos anos, quase três décadas, quando eu iniciava na jurisdição e quando ainda não havia sido implementada a autonomia financeira do Judiciário, a meu pedido foram determinadas algumas de conservação e de segurança no prédio do Foro. No interregno das obras houve a assunção de novo governador que, intempestivamente, impôs uma moratória. O resultado é que o pequeno empreendedor, embora tenha tido despesas pessoais com a obra, não recebeu o que lhe era devido pelo Estado por alguns meses, em época de inflação elevada.

Em muitas situações semelhantes, extrai-se daí que, muito embora o Estado Democrático de Direito signifique que ninguém deva estar acima da lei, o que no início se aplicou ao monarca, no Estado absoluto, na atualidade, no Brasil, não se aplica o Leviatã, ou melhor, o Estado tem o privilégio de estar acima da lei e, então, de dever e de impedir que o cobrem.

Pois ontem, em nova decisão histórica, o STF superou o PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA. Embora muitos nominem o disposto no inciso LVII do art. 5o. como presunção de inocência, passei a compreender esse instituto como um verdadeiro ESTADO. Até admito que talvez possa algum outro ter usado antes essa expressão, quando cometerei o pecado da ignorância sobre a autoria. E passei a compreender esse instituto dessa forma porque, por exemplo, o título jurídico de solteiro, ou estado civil, somente pode ser substituído por outro título jurídico, com base em um documento legal e formal. Alguém deixa de ser solteiro quando, casando, obtém o documento respectivo. Por isso é um estado. O mesmo ocorre com o ESTADO DE INOCÊNCIA, uma vez somente a sentença condenatória transitada em julgado pode mudar esse ESTADO e a sentença é um título, um documento, formal, legal e constitucional. Isso é o que está, claramente, estabelecido no art. 5o, LVII, da Constituição.

Então, o que o STF fez foi distinguir ESTADO DE INOCÊNCIA de execução da pena. Assim, enunciou que, efetivamente, somente a sentença condenatória transitada em julgado caracteriza alguém como culpado. Todavia, a partir do julgamento em grau recursal é possível a execução da pena. A motivação para essa compreensão é a de que isso evitaria recursos processuais protelatórios. Em outras palavras, os tribunais não conseguem vencer o volume de serviço forense e, por isso, haveria protelações, daí ser necessário flexibilizar o preceito do art. 5o, LVII, da Constituição.

Portanto, a par de incorrer noutro possível erro histórico e de revelar-se despropositadamente ativista, a decisão do STF não conseguirá solucionar o problema do excessivo volume de serviço forense. Antes o agravará. Certamente que, sendo determinada a execução antecipada, ou provisória de pena – instituto que as reformas do Código de Processo Penal aboliram do direito, mas não conseguiram abolir da praxe forenseos advogados poderão impetrar habeas corpus para evitar e corrigir erros judiciários, nulidades processuais, enfim, para verdadeiramente impedir que inocentes cumpram penas sem a observância do princípio do devido processo legal, que pela primeira vez constou no parágrafo 39 da Magna Charta do Rei João Sem Terra, de 1215, que no ano passado completou 800 anos.   

_Colunistas-Diogenes

Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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