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Seletividade Prisional: quanto vale a vida (nua) humana?

Por Luana Rambo Assis e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

O ordenamento jurídico penal vigente no Brasil ressalta que este deve pautar sua atuação pelo viés da igualdade de todos perante a lei, ou seja, o sujeito que comete crime deve ser responsabilizado dentro dos limites da proteção legal, tendo em vista que a criminalidade e a violência perpassam por todas as classes sociais independentemente do poder aquisitivo e econômico. No entanto, pode-se aferir que o direito penal da sociedade hodierna está pautado na seletividade e na consequente segregação carcerária, premissa esta que se confirma através do perfil da população prisional que abarrota as prisões brasileiras, compostas em sua grande parcela por camadas hipossuficientes e desprovidas dos direitos de cidadania. Desta forma, indaga-se a que interesses o sistema penal atende no momento em que criminaliza a pobreza e acoberta os crimes perpetuados pelas camadas que ocupam espaços privilegiados de poder na sociedade, também chamados de “crimes de colarinho branco”?

Esse cenário indica, segundo Batista (2007), que o sistema prisional brasileiro cumpre com o papel de legitimação da ordem estabelecida, no momento em que seleciona e segrega em meio ao seu universo setores da sociedade que são considerados pela lógica neoliberal desnecessários e irrelevantes. Essas pessoas precisam ficar afastadas da sociedade extramuros, que somente possui espaço para aqueles sujeitos que atendem aos padrões vigentes, ou seja, pessoas com poder aquisitivo e status condizente com a lógica hegemônica.

Recentemente o Conselho Nacional de Justiça lançou um relatório acerca do perfil da massa carcerária intitulado: “Mapa do Encarceramento: Os Jovens do Brasil”. O documento revela alguns dados referentes ao universo prisional mencionando que a população carcerária do ano de 2005 a 2012 deu um salto de 74%, agravando a superlotação, problema que tem sido alvo de inúmeros debates (BRASIL, 2015).

No que pertine ao perfil das pessoas privadas de liberdade, o documento revela que 61% são presos condenados e 38% provisórios aguardando julgamento. Em relação à faixa etária 54% eram jovens entre 18 e 24 anos com baixa ou nenhuma escolaridade. A cor da pele é um fator que merece atenção, já que os dados apontam que 58% dos detentos são negros. No que concerne ao tipo de crime cometido, os crimes contra o patrimônio lideram o ranking, seguidos de crimes envolvendo substâncias ilícitas, perfazendo um total de 20%. Os crimes contra a pessoa ficam em torno de 12% (BRASIL, 2015).

É possível enfatizar, diante da pesquisa em comento, que o universo prisional brasileiro, ao contrário do que os meios de comunicação propalam, não estão abarrotados de sujeitos com alto potencial de periculosidade, mas sim de segmentos pauperizados e vulnerabilizados do contexto social, econômico, político e cultural. Neste ínterim, o pensamento de Wacquant (2001) torna-se imprescindível na análise desses dados, na medida em que o autor menciona a passagem do Estado providência para o Estado Penitência, ou, em outras palavras, “mais direito penal para combater o menos estado social”.

Essa alternativa de enfrentamento da criminalidade acaba por reproduzir e legitimar a ordem social capitalista neoliberal, afinal, não há a problematização dos fatores que potencializam o crime: o viés adotado pauta-se pela punição e repressão de determinados setores que estão alijados do mercado de produção e consumo. De acordo com Bauman (2005), os clientes prioritários do sistema penal são os dejetos humanos, seres insignificantes e desnecessários para a atual conjuntura.

Corroborando com a discussão acerca da seletividade prisional, Santana (2002) lança alguns questionamentos no que se refere ao “crime de colarinho branco” ato este praticado não por segmentos pobres e sim por pessoas de alto poder aquisitivo e estimada influência política. A autora indaga onde estão os sonegadores ficais que ao invés de virem equipados com metralhadoras, usam um computador? Onde estão os agentes políticos, ou pessoas que cometem crimes e são preservadas pela influência e status que possuem? Onde estão os barões do tráfico, os grandes “peixes” que mandam em tudo e nunca aparecem? Este cenário deflagra as cifras negras das estatísticas criminais, ou seja, a criminalidade que não é revelada ou elucidada por ser tratar de sujeitos respeitáveis e influentes politicamente

Frente ao exposto, pode-se aferir que a igualdade propalada pelo direito penal brasileiro é uma falácia, um mito, que acaba por encobrir a realidade operacional do sistema punitivo, incutindo no imaginário social que a criminalidade está sob controle e que a sociedade está a salvo dos criminosos. Até quando o sistema penal irá fechar os olhos para os crimes cometidos pelo setor dominante? Será que as camadas hipossuficientes possuem maior propensão a cometer crimes ou são os mais propensas a serem criminalizados por um sistema de justiça desigual e excludente?

É sabido que o sistema prisional brasileiro, nas palavras de Paixão (1987), mais se assemelha a uma “universidade do crime” do que a uma instituição de reintegração social. As violações aos direitos humanos tornaram-se atos corriqueiros e banalizados pelo imaginário social. A superlotação, o déficit de vagas, a ausência de infraestrutura adequada, péssimas condições de habitabilidade, prisões ilegais, elevado número de presos provisórios, enfim, são inúmeras as atrocidades cometidas neste espaço que se intitula ressocializador. Neste ambiente hostil as pessoas que cumprem pena estão lançadas em uma vida nua tal qual a do homo sacer resgatada na obra do filósofo italiano Giorgio Agamben com vistas a retratar a vida desprovida de dignidade do homem contemporâneo.

A figura do homo sacer é utilizada por Agamben (2002) para retratar a vida nua, ou seja, uma vida desqualificada, desprovida de direitos, uma vida que não merece ser vivida. Nesse sentido, torna-se possível identificar na sociedade contemporânea alguns segmentos que podem ser comparados ao homo sacer detentor da vida nua. E os sujeitos que abarrotam o sistema prisional brasileiro constituem um dos exemplos mais contundentes dessa semelhança, pois eles vivem em um estado de exceção que se transforma, paradoxalmente, em regra. Os excessos do sistema prisional contribuem para a proliferação da vida nua.

Portanto, a seletividade prisional deve ser pensada neste contexto como um mecanismo de produção da vida nua, pelo fato de criminalizar segmentos da sociedade que já estão alijados das instâncias de produção e participação cidadã. O sistema prisional serve como depósito dos seres irrelevantes do ponto de vista econômico, levando a sociedade a acreditar que os segmentos vulnerabilizados e pauperizados tem maior tendência a cometer crimes, deixando impunes os crimes cometidos pelos setores de alto poder aquisitivo, que na maioria dos casos acarreta consequências bem mais danosas ao bem estar da coletividade.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Volume I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan,2007.

BAUMAN, Zigmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BRASIL, Presidência da República. Mapa do Encarceramento: os Jovens do Brasil. Secretaria Nacional da Juventude, Brasília, 2015.

PAIXÃO, Antônio Luiz. Recuperar ou Punir. Como o Estado trata o Criminoso. V.21. Cortez, São Paulo, 1987.

SANTANA, Carolina Giovanni Aragão de. As Cifras Negras e a Realidade das Execuções Penais no Presídio Regional de Santo Ângelo In Habes Data: Reflexões sobre o direito. Ano1. N. 2. Unijui, Ijui, 2002.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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Luana Rambo Assis. Assistente Social. Graduada URI São Luiz Gonzaga. Mestranda em Direitos Humanos UNIJUI. Bolsista Integral da CAPES.

 

Maiquel

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