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Atos de investigação se prestam a uma condenação?


Por Bruno Milanez


É factível pensar alguns dos limites à atividade probatória a partir da instrumentalidade constitucional do processo penal que consiste na adequação da práxis processual penal aos princípios/limites constitucionais (PRADO, 2006, p. 1).

Enquanto forma de limitação do poder punitivo do Estado e garantia de liberdade do cidadão, o processo penal demanda formalidades que garantam sua higidez e, em última análise, a possibilidade de uma efetiva democracia processual e o respeito à dignidade e liberdade individuais.

Portanto, não se deve confundir formalidade com formalismo, dado que aquela representa garantia fundamental do cidadão. Forma é sinônimo de garantia de cumprimento das regras do jogo e sua observância, em última análise, serve de termômetro à verificação do grau de democracia e civilidade da sociedade.

Uma das principais garantias que norteiam o processo, irradiando-se à atividade probatória, é o direito ao contraditório, consubstanciado no art. 5º, LV, da CR/88.

Joaquim Canuto Mendes de Almeida conceitua a garantia do contraditório como sendo a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los.” (ALMEIDA, 1937, p. 110; ALMEIDA, 1973, p. 80).  Esta aproximação identifica dois elementos centrais na noção de contraditório: a cientificação e a (possibilidade de) reação.

O conceito, desenvolvido na primeira metade século passado, deve ser pensado em face da principiologia constitucional que informa o atual estado da arte do processo penal brasileiro. E num cotejo do contraditório com a ampla defesa, verifica-se a necessidade de repensar aquela garantia. Isso porque a ampla defesa possui uma dimensão dúplice e complexa, formando um todo orgânico que engloba a autodefesa e a defesa técnica.

A autodefesa consiste no direito que o acusado tem de participar ativa e pessoalmente do processo. Trata-se de um direito disponível, na medida em que caminha em paralelo à garantia – de igual status constitucional – da vedação à autoincriminação forçada, consubstanciada em interpretação extensiva do direito ao silencio contido no art. 5º, LXIII, da CR/88.

A defesa técnica é a garantia do acusado de possuir profissional devidamente habilitado para desenvolver os atos defensivos no curso do processo, de forma indeclinável, plena e efetiva. Trata-se de direito indisponível – na medida em que todos possuem o direito a um defensor no processo penal –, decorrendo a indisponibilidade do próprio bem objeto de tutela no processo penal.

Assim, muito embora Joaquim Canuto Mendes de Almeida se refira à possibilidade da participação dialógica das partes enquanto reflexo do contraditório, o texto constitucional não se conforma somente com mera possibilidade e propugna a imprescindibilidade do contraditório real, pleno e efetivo no processo penal.

Trata-se o contraditório de princípio que se orienta à manutenção da simetria entre as partes, de modo a permitir equilíbrio entre as posições jurídicas de acusação e defesa. Portanto, a garantia deve ser orientada como inafastável direito à participação dialética das partes na realização dos atos processuais e, dentre eles, da prova.

A indisponibilidade do contraditório na formação da prova pode ser pensada através do sistema de persecução penal brasileiro. Como se sabe, em um sistema bifásico como o nosso, a persecução penal é desenvolvida em duas fases, uma pré-processual e outra processual.

A fase pré-processual, no Brasil, é desenvolvida preponderantemente pela Polícia Judiciária, através do inquérito policial, que pode ser conceituado como um procedimento administrativo, inquisitivo, escrito, com prazo determinado e que tem por objetivo colher elementos que permitam ao titular do direito de ação formar a sua opinio delicti acerca dos fatos investigados, exercendo ou não ação.

Este procedimento tem por característica fundante a inquisitividade – que não significa incompatibilidade plena com o direito de defesa ou mesmo sigilo absoluto das investigações – e nele o contraditório e o exercício do direito de defesa são mitigados.

O objetivo deste procedimento reside em angariar elementos de convicção que permitam ao titular do exercício da ação ingressar em juízo para obter a tutela jurisdicional ou, ainda, evitar a formação de um processo penal infundado ou temerário.

Os elementos produzidos nesta fase são denominados atos de investigação e se distinguem dos atos de prova, que são produzidos na fase processual da persecução penal. Em uma primeira aproximação, verifica-se que os atos de investigação e os atos de prova são produzidos em fases distintas: os primeiros na fase pré-processual e os segundos na fase processual. Isso implica reconhecer que os atos de prova são produzidos em um ambiente no qual o exercício do direito ao contraditório é pleno. Há, portanto, um maior plexo de garantias que cerca a produção dos atos de prova e que lhe garantem maior higidez e eficácia probatória.

Esta constatação não significa dizer que os atos de investigação são colhidos à revelia de quaisquer garantias, mesmo porque também estão sujeitos a controle de legalidade pelo órgão jurisdicional. O que se pretende afirmar é que os atos de investigação não são colhidos no ambiente dialético e dialógico do processo, motivo pelo qual sua eficácia probatória deve se restringir apenas à fase de juízo de admissibilidade de acusação.

Aury Lopes Jr, ao traçar um quadro distintivo entre atos de investigação e atos de prova (LOPES JÚNIOR, 2014, p. 291), conclui que aqueles, porque produzidos à revelia do juiz natural, em um procedimento alheio à plenitude do contraditório e da ampla defesa, não se deveriam prestar a uma decisão condenatória.

No plano constitucional inexiste qualquer referência expressa à vedação da utilização dos atos de investigação na sentença penal condenatória. Essa previsão, porém, é despicienda. Afinal, ao se assumir o direito processual penal como um todo orgânico, sistemático e orientado à máxima eficácia do texto constitucional, não admite a utilização, em desfavor do réu, de elementos produzidos à margem do processo e, portanto, alheios às suas garantias.

Em que pese essa leitura constitucional do processo penal, a legislação infraconstitucional é duvidosa:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

O dispositivo legal, da forma como redigido, possibilita duas leituras, fazendo-se necessário imprimir a esta regra exegese consentânea à principiologia constitucional. Neste particular, inviável conferir à regra interpretação de acordo com a qual os elementos informativos da investigação possam ser utilizados – ainda que subsidiariamente – em decisão penal condenatória.

Em outros termos, através de uma interpretação literal da regra do art. 155, do CPP, mormente em face da expressão exclusivamente contida no texto legal, poder-se-ia permitir que atos de investigação continuem sendo utilizados na sentença penal condenatória – ainda que aparentemente de forma subsidiária –, em evidente afronta à principiologia constitucional que orienta o processo penal (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 9).

A se permitir que elementos de convicção judicializados sejam utilizados em paralelo aos não judicializados, simula-se uma legitimidade ao ato decisório, pois aparentemente “o réu está sendo julgado com base nas provas colhidas no processo, quando na verdade, os juízes continuarão utilizando as clássicas viradas lingüísticas do “cotejando a prova judicializada com os elementos do inquérito…” ou “a prova judicializada é corroborada pelos atos do inquérito” (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 9) e, em última análise, os elementos de convicção processualizados podem ser desconsiderados – ou manipulados –, juntamente com as garantias do acusado.

Em conclusão, uma exegese que permita o embasamento da sentença condenatória em atos de investigação é inconstitucional (STRECK, 2008, p. 118-9). Necessário, pois, atribuir ao art. 155, do CPP, uma exegese consentânea à instrumentalidade constitucional do processo.

E um dos caminhos para se cristalizar essa exegese deve partir da aplicação da técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, porém com redução de sentido (STRECK, 2010, p. 171), do art. 155, do CPP, de modo que a expressão “exclusivamente”, contida no texto legal, não possa ser utilizada com um sentido que compactue a utilização de atos de investigação na sentença, salvo quando estes atos forem irrepetíveis ou favoráveis ao acusado.

Esta é a conclusão de Nereu José GIACOMOLLI (2008, p. 23), para quem

“uma exegese comprometida com a preservação de um processo penal transparente (art. 5º, LX, CF), humanitário (art. 1º, III, CF) e constitucional (arts. 1º, caput e 5º, § 2º, da CF), admitirá esses elementos [atos de investigação] somente quando forem para afastar um provimento condenatório.”

É perceptível que, através dessa filtragem constitucional, os atos de investigação não são englobados, como regra, na atividade probatória, não podendo servir como elementos de convicção válidos para permitir um provimento condenatório.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. A contrariedade na instrução criminal. Tese de Livre Docência apresentada junto ao departamento de Direito Processual da FADUSP. São Paulo, 1937.

__________. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considerações críticas, provas, ritos processuais, júri e sentença. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014.

__________. Bom para quê(m)? In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, nº 188, jul. 2008.

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

STRECK, Lenio. Novo Código de Processo Penal: o problema dos sincretismos de sistemas (inquisitórial e acusatório). In: Revista de Informação Legislativa. Brasília. a. 46, n. 183, jul./set. 2008.

__________. Aplicar a “Letra da Lei” é uma atitude positivista? In: Revista NEJ – Novos Estudos Jurídicos (Eletrônica). v. 15, n. 01, jan./abr. 2010.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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