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Castro Alves e a importância da poesia para modificar o Direito vigente

Castro Alves e a importância da poesia para modificar o Direito vigente

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança.

A poesia tudo cerca: ela está incrustada, desde os primórdios das civilizações, como um gene no ser humano que luta com a palavra como quem luta pela sobrevivência.

Não fez diferente o poeta Antônio de Federico Castro Alves (Curralinho, hoje Castro Alves, Bahia, 1847 – Salvador, 1871) em sua ambição literária, social e republicana, que avassalou a palavra para desmontar, em seu projeto literário, concepções abjetas e passadistas frente ao novo século: excomungou, em praça pública, os entraves diante da libertação dos escravos e da proclamação da república.

Foi longe, neste sonho, o coração do estudante de Direito do Largo São Francisco. Além dos amores notórios de sua vida exaltada, Castro Alves flertou com causas sociais e jurídicas de importante relevância para a construção do Brasil.

Não há que se falar, portanto, sob à ótica de seu trabalho, que a Literatura está recuada do Direito. Castro Alves externa uma prova inconteste deste fato: usou-a como ferramenta imprescindível para ponderar na balança da justiça. Como um jovem romântico que subia nas tribunas e conclamava em praças públicas, quis o “poeta condoreiro” pregar a sua poesia como o raio prega, em um instante, a descarga elétrica no céu.

Cravou-se no tempo e entrou, indubitavelmente, pela porta da frente na história do Brasil. Sua crítica tenaz à escravidão é um pilar de sua obra curta, porém intensa e grave ante cabedal literário brasileiro, por isso ele é considerado, como disse o escritor Jorge Amado: “a estrela matutina da liberdade”.

O “poeta dos escravos” enfrentou de forma hercúlea a inimiga de sua mais adorada e cantada musa: a liberdade. Concatenou-se aos ideais do tempo, fora discípulo fiel de outro romântico, o francês Victor Hugo, para quem “O Século é grande e forte” e acreditou, como Giuseppe Mazzini, patriota italiano, que já era a “hora do advento das nações”.

Castro Alves, então, criticou de modo impetuoso a ignóbil afirmação do jurisconsulto do Império do Brasil, Augusto Teixeira de Freitas (2002, p. XXXVII), que afirmou em sua “Consolidação das Leis Civis”, datada de 1858, que “as leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas à parte, e formarão nosso Código Negro.”

Cabe lembrar que o Código Negro, fruto de Jean-Baptiste Colbert, ministro de Estado do monarca Luís XIV, foi uma das marcas mais aterrorizantes da escravidão francesa. Em seu artigo 38, o Código apregoava:

O escravo fugitivo que tem sido na corrida por um mês a partir do dia em que seu mestre tem denunciado em tribunal, orelhas cortadas e será marcado com uma flor de lis ombro.

De modo semelhante encartava o Código Criminal do Império do Brasil de 1830 em seu artigo 60:

Se o réo for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será conmdemnado na de açoute, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar. O número de açoutes será fixado por sentença; e o escravo não poder´pa levar por di mais de cincoenta.

Lembra, ainda, o jurista Evaristo de Moraes, em análise destes documentos na sua obra “A Campanha Abolicionista (1879-1888)”, que segundo o Conselheiro Otoni, o açoite era executado da seguinte forma:

Era castigo crudelíssimo: – atava-se o paciente solidamente a um esteio (poste vertical de madeira) e, despidas as nádegas, eram flageladas até ao sangue, às vezes até à destruição de uma parte do músculo. Se não havia o esteio, era o infeliz deitado de bruços e amarrado em uma escada de mão; aí tinha lugar o suplício (1966, p. 177).

Todas estas mazelas justificadas pelo ordenamento jurídico vigente assolavam a poesia castro-alvense, infestada, até nos mais profundos poros, deste seu projeto de libertação dos escravos: que era, sabidamente, a profissão de fé do poeta baiano.

A eles deu o seu mais proeminente poema, “Navio Negreiro”, onde o leitor é convidado a descer no escuro da necrópole flutuante que navegava nos mares. Escreve o poeta, perturbado, em “Estrofes do Solitário”, uma crítica aos que adiavam o fim da escravidão:

E vós cruzais os braços… Covardia!

E murmurais com fera hipocrisia: 

— É preciso esperar… 

Esperar? Mas o quê? Que a populaça, 

Este vento que os tronos despedaça, 

Venha abismos cavar? 

Ou quereis, como o sátrapa arrogante, 

Que o porvir, n’ante-sala, espere o instante 

Em que o deixeis subir?! 

Neste aspecto da poesia castro-alvense, concebe-se uma análise relevante para o Direito, que por meio da Literatura, pode ser analisado de acordo com a época em que se destaca a obra em questão, podendo se observar, assim, uma determinada realidade social junto de suas respectivas instituições.

O escritor Roland Barthes denota, de modo coerente, este pensamento que se constrói em torno da importância que tem Literatura para a história de uma sociedade, funcionando, de certo modo, como uma espécie de “guardiã” de seus valores e momento. Escreve Barthes:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. […] a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. (1979, p. 18-19)

Neste arcabouço, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, por sua vez, demonstra uma lição que aproxima o sistema artístico e o sistema jurídico, onde se pode verificar, conforme quis Thomas Morawetz, a Literatura como fator para a reforma do Direito. Diz ele:

Pensar o Direito é filosofar sobre o Direito. A reflexão em torno do Direito é interminável, como um jogo de espelhos. Textos literários têm força histórica e episódica. Podem, inclusive, reconstituir e formatar a História do Direito. Aristóteles teorizou a Literatura, definindo categorias, como tragédia e comédia. A Literatura tem fundamental e substancial sentido estético. A responsabilidade social do artista escritor é propulsora de produção literária crítica. O escritor geralmente carrega para a Literatura vasta experiência colhida em outras atividades, mesmo uma ida à padaria, para a compra de pão. O escritor exprime sua visão de universo, de mundo, de homem, de instituições. Por isso está autorizado a explicitar sua visão de Direito. (2009, p. 29)

A poesia abolicionista de Castro Alves, portanto, envereda-se por este caminho: toca o Direito e o desmonta diante da poesia para erguer “um templo novo,/ Porém não que esmague o povo,/ Mas que lhe seja o pedestal.”

É por meio de sua obra que se lança uma crítica ao ordenamento jurídico, à condição do escravo e às barbáries impostas a estes desvalidos que “Nem são livres p’ra… morrer.”

Uma nova compreensão do Direito levantada pelo poeta se destaca nas campanhas abolicionistas do Brasil, onde figuras como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco despontaram. Em seu livro “O Abolicionismo”, de 1883, este último escritor lança uma crítica aos novos cidadãos do século vindouro que, no entanto, não se deixa de aplicar ao jurista em formação no Brasil atual:

Nenhuma das grandes causas nacionais que produziram, como seus advogados, os maiores espíritos da humanidade, teve nunca melhores fundamentos do que a nossa. Torne-se cada brasileiro de coração um instrumento dela; aceitem os moços, desde que entrarem na vida civil, o compromisso de não negociar em carne humana; prefiram uma carreira obscura de trabalho honesto a acumular riqueza fazendo ouro dos sofrimentos inexprimíveis de outros homens; eduquem os seus filhos, eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do Destino, e de adquirirem a consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la (2003, p. 206, grifo nosso).

É incomensurável, portanto, a importância do jovem poeta em tal movimento. Dotado de uma poesia forte e audaciosa, Castro Alves conclama elementos divinos e elementos naturais para compor o seu clamor em prol dos escravos: “Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?” Com essas palavras, ostenta-se o escritor de resistência, parecendo duelar, com sua poesia, diante do Direito composto e ditado por uma elite (cultural, financeira/agrária).

Chama ele, em “O Navio Negreiro”, a ave albatroz para descer no túmulo flutuante, pois “não pode olhar humano/ Como o teu mergulhar no brigue voador!”. Também o faz, de modo igual, ao chamar o leitor e ouvinte de sua poesia para se juntar aos moços abolicionista nesta luta. Escreve ele em “Tragédia no Lar”:

Leitor, se não tens desprezo

De vir descer às senzalas,

Trocar tapetes e salas

Por um alcouce cruel,

Que o teu vestido bordado

Vem comigo, mas … cuidado …

Não fique no chão manchado,

No chão do imundo bordel.

Dado os excertos, não há que se discutir a importância da poesia na modificação do Direito. Com Castro Alves na representação máxima, a luta pela modificação do Direito vigente ganhou grandes adeptos que, certamente, fazem parte do panorama histórico e cultural do Brasil.

É certo que a Constituição Imperial outorgada por Dom Pedro I (1824) se calava formalmente diante da escravidão. Entretanto, isso não impediu que leis referentes aos escravos permaneceram esparsas em normas das Ordenações Manuelinas, Filipinas e após 1822, em leis de natureza civil-comercial, e Código Criminal, Código de Processo Criminal, Codificação das Leis Civis, etc, como lembra Eunice Aparecida de Jesus, professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP.

Foi José Bonifácio de Andrada, patrono da independência do Brasil, professor de figuras ilustres como Rui Barbosa e o poeta aqui destacado, quem apresentou uma representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil defendendo a extinção da escravidão, pois como afirmava o texto:

o mal está feito, senhores, mas não o aumentemos cada vez mais; ainda é tempo de emendar a mão.

Tal fato lhe rendeu, em um episódio conhecido como “Noite da Agonia”, no Senado do Império do Rio de Janeiro (atual Faculdade de Direito da UFRJ), a prisão e o exílio. E a ele que Castro Alves chama, no golpe final do “Navio Negreiro”: “Andrada! arranca esse pendão dos ares!”.  

Dado este panorama histórico, literário e jurídico/legislativo, evidencia-se a importância da poesia castro-alvense para uma crítica ao Direito posto e sua consequente aplicação. O poeta, na essência de seus trabalhos, pôde seguir ipsis litteris a lição de Victor Hugo, que questionou: “O que é a dor física compara à dor moral? Horror e piedade diante de leis como essas!” Desta forma, nota-se a Literatura como fator para a reforma do Direito.

A obra do poeta baiano, contudo, não se restringe ao século XIX e aos seus obstáculos. Talvez o Direito brasileiro precise, nesta segunda década do século XXI, de outro poeta com a potência de Castro Alves: que não se intimide diante dos problemas jurídicos e lance a palavra como um livro aberto ao povo, para lembrar que “Quem cai na luta com glória,/ Tomba nos braços da História,/ No coração do Brasil!”, pois a brisa do Brasil, apesar das catástrofes jurídicas e políticas contempladas diariamente, ainda beija e balança.


REFERÊNCIAS

ALVES, Castro. Os Escravos. São Paulo: Martins, 1972.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989.

FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. Brasília: Senado Federal, 2002, v. 02.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. Direito e Literatura: anatomia de um desencanto; desilusão jurídica em Monteiro Lobato. Curitiba: Juruá, 2009.

MORAES, Evaristo. A Campanha Abolicionista (1879-1888). 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1966.

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1977.

Gustavo Cardoso Silva

Estudante de graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e pesquisador do NTDH (Núcleo de Pesquisa sobre Teoria dos Direitos Humanos)

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