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Interferência do setor privado na segurança pública

Interferência do setor privado na segurança pública

A Segurança pública é dever do Estado e direito da população, conforme preconiza a Constituição de 1988:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Sem dúvida que a segurança pública é o calcanhar de Aquiles da sociedade brasileira. A Polícia Federal tem os melhores salários e muitas vezes melhores infraestruturas; as polícias estaduais sofrem com salários menores, estruturas precárias e uma demanda que nunca cessa. A falta de uniformização de dados dificulta um estudo sistematizado de como lidar com os crimes mais graves. 

O Instituto Sou da Paz é uma das organizações que se propõe a estudar os índices de criminalidade no Brasil e buscar soluções mais efetivas. A falta de informações detalhadas dificulta a busca de soluções:

Em 2017, o Instituto Sou da Paz propôs a criação de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios reconhecendo que conter a violência no Brasil demanda, além de políticas efetivas de prevenção e repressão, o fortalecimento da investigação de homicídios. Naquele momento, e até hoje, o intuito da presente iniciativa é provocar o reconhecimento por parte do Estado e da sociedade brasileira da importância da investigação de homicídios para combater a sensação de que o crime compensa. Ao fim e ao cabo, pôr termo à impunidade significa, em matéria de crimes contra a vida, retirar criminosos perigosos de circulação, dissuadir novos crimes e mortes pelas mãos de justiceiros e efetivar o direito à verdade e à memória daqueles que foram diretamente afetados.

(…) Para a produção do relatório “Onde Mora a Impunidade?” em 2017, apenas seis estados foram capazes de produzir os dados necessários para o cálculo do percentual de homicídios dolosos consumados ocorridos em 2015 que geraram denúncias criminais naquele ano: Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo.1 Os demais estados não encaminharam as informações por falta de sistema ou mão de obra, enviaram dados incompletos, ou sequer responderam às solicitações do Instituto Sou da Paz, realizadas via Lei de Acesso à Informação, ofício e e-mail.

Apenas no ano de 2017, o Brasil registrou 55 mil vítimas de homicídio doloso. Desse número absurdo, poucos chegam à formalização da denúncia pelo MP. Muitos casos se arrastam em inquéritos intermináveis e muitos se perdem pelo caminho, sem resolução alguma.

Em seu pioneiro estudo, o Instituto Sou da Paz chegou às seguintes conclusões:

 

  • Considerar a reorganização das leis orgânicas das Polícias Civis Estaduais, visando racionalizar o número de carreiras existentes, aprimorar a gestão de recursos humanos e melhorar a remuneração das carreiras;
  • Normatizar processos e modernizar a gestão das Polícias Civis Estaduais, com procedimentos padronizados e informatizados, bem como investir na estrutura física das unidades e equipamentos;
  • Inibir iniciativas que busquem realocar a gestão das Polícias Militar, Civil e Técnico-Científica para secretarias diferentes, o que dificulta a necessária integração e cooperação entre as polícias;
  • Garantir a disponibilidade ininterrupta de equipes completas (delegado, investigadores e peritos) de atendimento de local de crime para chegada célere a todas as regiões dos estados;
  • Criar equipes especializadas focadas na investigação de homicídios;
  • Fortalecer as perícias criminais (equipamentos, concurso e formação), ofertando mais equipamentos e recursos materiais e humanos para que os laudos técnicos sejam realizados com mais agilidade e precisão, seguindo protocolos e melhores práticas;
  • Elaborar e disseminar doutrina de investigação de mortes violentas intencionais, com a fixação de protocolos comuns de ação entre as instituições do sistema de segurança de justiça criminal.

 

Recentemente o Rio Grande do Sul, estado que vive uma crise sem precedentes de segurança pública, aprovou uma lei que autoriza doação privada para o referido setor. A Lei Complementar nº 15.224 de 10 de setembro de 2018 criou o “Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul – PISEG/RS.”

Dispõe a LC:

Art. 2º O Programa tem por objetivo possibilitar às empresas contribuintes de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS –, estabelecidas no Estado do Rio Grande do Sul, a compensação de valores destinados ao aparelhamento da segurança pública estadual, na forma desta Lei Complementar, com valores correspondentes ao ICMS a recolher, verificado no mesmo período de apuração dos repasses.

(…)

Art. 4º Cabe ao Conselho Técnico do Fundo Comunitário PRÓ-SEGURANÇA o exame prévio dos Projetos do PISEG/RS que serão encaminhados para aprovação final pelo Secretário da Segurança Pública, nos termos da Lei n.º 15.104/18.

Parágrafo único. As empresas contribuintes poderão propor ao Conselho Técnico o credenciamento de entidade sem fins lucrativos para representá-las na consecução de determinados projetos do PISEG/RS, sem a percepção de remuneração para tal, observados os requisitos do § 3º do art. 2º da Lei n.º 15.104/18.

Interferência do setor privado na segurança pública

Já é absurdo o bastante abrir essa possibilidade legal de que recursos do setor privado sejam direcionados à segurança pública, pior ainda quando o “doador” pode escolher para onde vai o benefício. Assim, determinados bairros ficariam contemplados, enquanto outros seriam negligenciados. A lei foi chamada ironicamente de “Lei Rouanet da Segurança Pública”:

Desde agosto de 2019, os empresários do Rio Grande do Sul podem trocar o pagamento de uma parte do imposto devido ao estado pela aquisição de armas, viaturas e outros equipamentos para as forças de segurança estaduais. A nova norma, apelidada de “lei Rouanet da segurança pública”, possibilita que os próprios empreendedores determinem a destinação dos bens adquiridos: podem indicar um uso específico do artigo comprado e até o local – município ou bairro – onde preferem que seja aplicado. (PAPINI, HOFMEISTER, 2019.).

O Estado não pode, em desacordo com a Constituição, deixar a segurança pública sob a influência do setor privado. É dever do Estado destinar recursos à Segurança Pública, e através de estudos e relatórios bem fundamentados, decidir como esses recursos serão aplicados. 

A Segurança Pública requer estudos mais aprofundados, melhoria da infraestrutura policial, fortalecimento da perícia criminal, tanto em estudos acadêmicos quanto no dia-a-dia das delegacias, entre outros fatores. Leis como a LC 15.224/2018 podem abrir um precedente perigoso para isentar o Estado de seu dever constitucional de zelar pela Segurança Pública, direcionando tal ônus ao setor privado. 


REFERÊNCIAS

PAPINI, Pedro. HOFMEISTER, Naira. Com “Rouanet da segurança” empresários podem interferir na aplicação de recursos no RS. Publicada em Agência pública, 12 de setembro de 2019. Disponível aqui.


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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