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O Direito Penal na sociedade de risco


Por Guilherme Boaro


Não há muitas dúvidas de que o direito penal vem passando, já há um tempo considerável, por um momento de muitíssimas peculiaridades. Talvez não possamos considerar tal constatação como um privilégio deste tempo, senão que somente mais uma etapa da história da ciência penal, cujo desenvolvimento é formado por muitos dissensos e poucos consensos. É, portanto – e assim sempre foi –, a partir de conflitos que o direito penal buscou se desenvolver, de modo a se (re)adaptar a cada “modo de viver” de cada comunidade e de acordo com um determinado momento histórico.

A partir deste horizonte compreensivo é que se pode perceber a singularidade do momento que se está a viver. Vivemos em um mundo cujo modelo social é configurado por conflitos que assumem uma nova forma, com novas consequências e com novos meios de se realizar. Os conflitos podem ocorrer virtualmente, estarem relacionados a objetos distantes ou que sequer possuem uma realidade física, e gerar consequências para um sem número de pessoas. Em outras palavras: o conhecido “Efeito Borboleta” nunca fez tanto sentido.

Este modelo é o chamado “Sociedade de Risco”, termo cunhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, e pode ser percebido em face das constantes modificações com que a sociedade contemporânea tem se deparado, em razão, por exemplo, de uma economia absolutamente variante e o cada vez mais veloz desenvolvimento de insumos tecnológicos. A dimensão de complexidade a que este modelo está arraigado é, em termos de percepção, “incalculável”. Alteram-se, em grande medida, as noções de tempo e de espaço, em uma relação cada vez mais confusa, bem como os perigos e os medos com os quais nos deparamos: o “presente” altera-se cada vez mais rápido em face de um “futuro” que se pretende apreender de maneira cada vez mais antecipada em mundo quase sem fronteiras; e os medos, cada vez mais vinculados a uma crescente sensação de insegurança, são, em considerável medida, decorrência de riscos que advêm de um avanço tecnológico irrefreável.[1]

Não se pretende desconsiderar aqui, por óbvio, os inquestionáveis benefícios que o desenvolvimento tecnológico trouxe para o bem estar das pessoas. Pretende-se, isso sim, demonstrar que não se pode ignorar as suas consequências negativas, por exemplo, o crescimento gradativo da sensação de medo e insegurança diante do aumento considerável de riscos em uma dimensão cada vez mais global.

Em curtas palavras[2], pode-se afirmar que a sociedade de risco, que se configura a partir do denso e, sob alguma perspectiva, perigoso processo de globalização, propicia uma cada vez maior sensação de insegurança. A globalização passa a gerar a cada dia novas formas de risco (CALLEGAR; WERMUTH, 2010, p. 13). Formas, estas, que, na sua fluidez, no mais das vezes sequer são apreensíveis. A insegurança generalizada, portanto, não raras vezes se perfaz em razão de um sentimento de medo cujo objeto de temor é o desconhecido: não sabemos o que temer e ainda assim tememos. A categoria do risco assume, diante disso, o papel de protagonista.

É, portanto, diante deste específico cenário que o direito penal tem tentado se mover. E, ao mover-se, acaba por enfrentar, invariavelmente, paradigmas que influenciam sua própria estrutura e, sobretudo, sua forma de situar-se diante da relação cada vez mais complexa entre o indivíduo e a coletividade.

A incorporação pelo direito penal desses “novos espaços[3]” de relação humana, que se mostram, ao mesmo tempo, como causa e consequência da sociedade (de risco) em que vivemos, é a decorrência lógica do funcionamento do direito em termos gerais. O direito, na medida em que pretende regular, por meio de normas (regras e princípios) as relações de uma determinada comunidade, naturalmente acaba por se expandir na regulação das novas formas sociais em todas as suas facetas.

O direito penal, por óbvio, não se coloca de maneira diversa diante destes novos cenários. Na medida em que o direito, em termos gerais, amplia o seu âmbito de regulação, naturalmente mais conflitos passam a possuir uma relevância jurídico-penal. Em outras palavras, pode-se dizer que a expansão do direito penal é a consequência natural da expansão de todo do direito.

A questão que se coloca, contudo, diz respeito não acerca da legitimidade de atuação do direito penal nestes específicos espaços de intervenção, mas, sim, sobre a necessidade de compatibilização de suas bases principiológicas. Dentre as inúmeras questões que podem ser postas como problemáticas, uma deverá ser aqui registrada: A necessidade de adequar este específico âmbito de intervenção com o modelo de crime como ofensa a bens jurídicos. Em síntese, (a) o direito penal só deve intervir em casos em que configurada a ofensividade, devendo haver, neste âmbito, desvalor da conduta e devalor do resultado; e (b) a ofensa deve estar relacionada a um bem jurídico com dignidade penal, devendo, por isso, ser tratado com certo cuidado o estreitamento na relação entre o direito penal e o direito administrativo.

Em rápida conclusão, deve-se salientar que muitas outras questões acerca do modo de atuar do direito penal na sociedade do risco poderiam ser objetos de análise no presente texto. Optou-se, entretanto, por despretensiosamente levantar alguns singelos pontos para reflexão, a qual vai finalizada com uma belíssima passagem de Ulrich BECK (2010, p. 10) escrita em 1986:

“O discurso da sociedade (industrial) do risco, também e principalmente nesse sentido – enunciado há cerca de um ano contra muita resistência de vozes internas e externas –, manteve um amargo sabor de verdade. Muito do que se impôs por escrito, de modo ainda argumentativo – a indiscernibilidade dos perigos, sua dependência do saber, sua supranacionalidade, a ‘desapropriação ecológica’, a mudança repentina da normalidade em absurdo etc. –, pode ser lido após Chernobyl como uma trivial descrição do presente. Ah, pudesse ter continuado a ser a evocação de um futuro a ser evitado.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: 34, 2010.

CALLEGARI, André Luis; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi.        Sistema penal e política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.


NOTAS

[1] Nesse exato sentido, LIMA, Bruna Aspar. A reparação do dano como protagonista no direito penal ambiental: o caráter de ultima ratio, subsidiariedade e fragmentariedade. São Leopoldo: UNISINOS, 2014, 133f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2014, p. 11.

[2] A temática da sociedade de risco possui inúmeras questões de muitíssima profundidade, motivo pelo qual não poderão ser desenvolvidas no âmbito deste breve escrito. Para maior aprofundamento, remetemos o leitor à obra de Ulrich Beck: BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: 34, 2010.

[3] Por exemplo, a tutela penal do meio ambiente, o surgimento do direito penal econômico, os crimes informáticos, etc.

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Guilherme Boaro

Advogado. Mestrando em Ciências Criminais. Especialista em Ciências Penais. Pesquisador em Direito Penal e Dogmática Penal.

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