Os problemas do sistema prisional vão muito além do preso
Os problemas do sistema prisional vão muito além do preso
Se você pensa que os (graves) problemas do nosso sistema prisional são questões atinentes apenas a quem se encontra preso, você está enganado.
É muito comum ver textos por aí que retratam as várias violações aos direitos das pessoas que estão presas (o que é a mais pura verdade), como se os efeitos do nosso péssimo sistema prisional se restringissem a elas.
Não se pode negar que punimos os acusados de cometer crimes (os que se encontram presos) de maneira muito além daquela estabelecida pela legislação que versa sobre o tema.
Além da maior parte das pessoas que estão presas sequer ter sido julgada, não havendo “certeza” quanto ao cometimento do delito, temos locais superlotados, insalubres, com poucos (ou nenhum) direitos assegurados.
Mas esse cenário já é conhecido por nós, nem que para muitos seja apenas na teoria, e não é ele o foco do presente texto.
O ponto que quero chamar atenção nesse momento é relacionado ao fato de que várias outras pessoas (que não estão presas) também são diretamente prejudicadas e, consequentemente, têm seus direitos mitigados diante da catastrófica situação.
Falo, principalmente, dos agentes penitenciários, os quais vivenciam diretamente todos os problemas.
Se o lugar é insalubre, mal iluminado, pouco ventilado, inóspito, …, não é somente para quem está preso, mas também para quem trabalha o dia inteiro lá dentro.
Já parou para pensar como deve ser difícil trabalhar lá dentro? Como deve ser complicado compartilhar dessas precárias estruturas com as pessoas que estão presas?
Para se ter ideia da situação vivenciada pelos agentes penitenciários, na última inspeção prisional que participei, relativa a um centro de detenção provisória de Serra/ES, a capacidade do estabelecimento prisional era de 548 (quinhentos e quarenta e oito) pessoas e estavam presas 892 (oitocentos e noventa e duas) pessoas.
Sabe quantos agentes penitenciários trabalhavam lá? 39, sendo treze por turno.
Trinta e nove agentes penitenciários responsáveis por 892 (oitocentos e noventa e duas) pessoas. Será que é o suficiente?
A quantidade ínfima de servidores só serve para agravar todos problemas suportados, principalmente diante do iminente risco de confrontos (rebeliões) e fugas, o que transforma o trabalho diário em uma realidade preocupante.
Vivenciar todas as violações de direitos (deles próprios e dos detentos) é uma das causas desses trabalhadores serem acometidos das mais variadas doenças psíquicas.
Nesse ínterim, de acordo com o trabalho “Transtornos Mentais e do Comportamento Relacionados ao Trabalho dos Agentes Penitenciários do Estado de Santa Catarina”:
"A atividade prática dos agentes penitenciários é realizada num ambiente insalubre, precarizado, perigoso e com grande propensão ao desenvolvimento de vários distúrbios."
Ademais, segundo o estudo “Psicopatologias em Agentes Penitenciários: uma Relação entre Trabalho e Saúde“,
"além destes problemas os agentes penitenciários sofrem o fenômeno da prisionização, pois se sabe que na prisão existem dois presos, o apenado e o funcionário, que em menor ou maior grau, adotam as transformações advindas do ambiente prisional, bem como suas dinâmicas."
Alvino Augusto de Sá, em sua obra Criminologia Clínica e Psicologia Criminal (p. 145/146), ao tratar da arquitetura dos presídios, fez pesquisa com grupos de agentes penitenciários, abordando questões relacionadas ao ambiente de trabalho. Vejamos o que foi dito por alguns desses agentes:
“O guarda, com o tempo, está arriscado a ficar doente, pelo ambiente carregado.” “O ambiente, o tipo de edificação do presídio reflete na gente, sim. Fecham-se as portas. A gente sente o choque. Depois a gente se acostuma. São 12 horas preso. A gente acaba adquirindo até a gíria.” “Acostumar mesmo, ninguém acostuma. O comportamento da gente muda. Fica mais esperto. Fica mais agitado. A gente perde a confiança nos outros. Começa a desconfiar dos outros na rua.” “O murão e a grade: de o cara [agente] for meio fraco, isso mexe com ele. A grade e o muro assustam. É como uma enchente: água por todo o lado em volta. Não dá para ir para lado nenhum.”
Posteriormente, o autor conclui:
"Os agentes penitenciários testemunham o quanto o ambiente carcerário, incluída aí a edificação, pode agir sobre eles próprios, sobre seu psiquismo, suas emoções e sua própria conduta."
Ainda, conforme o trabalho “Transtornos Mentais e do Comportamento Relacionados ao Trabalho dos Agentes Penitenciários do Estado de Santa Catarina”
"Além da peculiaridade do ambiente prisional, existem outros fatores que provocam reações de tensão, chamados de estressores. Alguns estressores como: a desvalorização profissional, a falta de uma política de ascensão, a sensação de insegurança, pagamento inadequado, conflitos no desempenho da função, a ausência de autonomia nas decisões, a insuficiência de motivação, alta carga de tarefas, a falta de apoio social etc., geram insatisfação e a perda de sentido no trabalho (Schaufeli & Peeters, 2000)."
Não podemos esquecer que o papel do agente penitenciário é essencial para o alcance das funções da pena (por maiores que sejam as críticas relacionadas a elas), sendo imprescindível que ele tenha condições (estruturais, físicas e psíquicas) de exercer com dignidade tal missão.
Este profissional constitui-se como principal disciplinador no processo de ressocialização do detento através do contato direto e rotineiro com o mesmo. Deste modo, lhes são exigidas não só habilidades indispensáveis para o cumprimento de sua função, como também bom relacionamento dentro e fora do ambiente de trabalho, valores morais e éticos, além de uma estrutura psíquica muito consistente.
Mas, como dizia Dejours (1949, p. 45) “até indivíduos dotados de uma sólida estrutura psíquica podem ser vítimas de uma paralisia mental induzida pela organização do trabalho”.
Assim, garantir ao agente penitenciário condições mínimas e dignas para o trabalho é contribuir para o sucesso da “ressocialização” do preso, ao mesmo tempo em que garantir mínimas e dignas condições para os presos é possibilitar melhores condições de trabalho aos agentes.
É um paradoxo.
Não se trabalha para melhorar a situação das unidades prisionais e por consequência a dos presos, fazendo com que as condições de trabalho dos agentes (servidores essenciais para o sucesso da pena) sejam precárias e geradoras das mais variadas doenças psicológicas/psiquiátricas, contribuindo diretamente para a manutenção do sistema como ele se encontra atualmente, caótico.
Assim, devemos entender que lutar por melhores condições carcerárias não se resume a buscar garantir direitos ao preso, mas também dar dignidade a quem se encontra lá dentro e não está cumprindo pena, o agente penitenciário.