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Tempo de matar

Tempo de matar

Cada vez mais, obras cinematográficas vêm sendo utilizadas no meio acadêmico pra fomentar discussões jurídicas:

Dentre as tendências de caráter interdisciplinar que despontaram no meio acadêmico jurídico de diversos países ocidentais na segunda metade do século XX, “Direito e Literatura” e “Direito e Cinema” assemelham-se pela ousada proposta de aproximar o mundo do Direito a universos ficcionais, na busca por novos espaços de reflexão e compreensão do fenômeno jurídico e de sua complexa e dinâmica relação com outras manifestações culturais. (OLIVO, MARTINEZ, 2014).

Baseado no livro de John Grisham, o filme de 1996, Tempo de matar, permanece atualíssimo pela sua temática que mistura racismo, violência sexual contra crianças e as falhas da Justiça.

O filme começa com um crime bárbaro: dois homens brancos estupram uma criança negra, uma garota de seus dez anos, em Canton, Mississipi, região com a herança racista que caracteriza ainda nos dias atuais o sul dos E.U.A.

A violência do ato a deixa hospitalizada por dias, com seu pequeno útero dilacerado. Com a comoção causada pelo crime, os dois criminosos são presos. No entanto, a mera possibilidade dos agressores serem soltos sob fiança deixa o pai da criança transtornado. Ele invade o Tribunal armado e mata os dois homens, ferindo ainda um terceiro.

No Mississipi, Carl, o pai da criança agredida, Tonya, corre ainda o risco de ser condenado à pena de morte pelos homicídios. Sem muita saída, o homem contrata um advogado branco, seu velho conhecido, para sua defesa.

O advogado contratado era o que alguém com as condições financeiras de Carl poderia pagar. Seu escritório vivia às moscas. Mesmo assim, o advogado Jake Tyler compra a causa, mergulhando de cabeça a fim de salvar a vida de seu cliente.

O juiz dificulta a tese de defesa de Jake, proibindo qualquer menção ao crime de estupro no Júri de seu cliente. Em sua visão simplista do caso, o processo versa sobre o assassinato de dois homens. Nada mais. Ressaltemos que a legislação norte-americana é diferente da legislação brasileira em muitos aspectos. No CP brasileiro, o motivo do crime influi na determinação da pena imposta ao réu:

Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I – as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. (grifos nossos).

Também no Brasil a violenta emoção do réu, ou fator relevante para o cometimento do crime, são fatos que podem diminuir a pena de homicídio:

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Jake não pode contar com essa linha de defesa. Seu cliente tem pouquíssimas chances de ser absolvido e corre risco de parar na “milha verde”, eufemismo para o corredor da morte, local onde os que são condenados à pena de morte aguardam a execução.

Para a população e para a mídia, a questão racial pesava mais que a violência sofrida pela criança. A mídia estava mais preocupada com o assassinato de dois homens “de bem” por um homem negro e pobre, do que a violência sexual sofrida por Tonya, que convalescia no hospital. Jake sofre ataques em seu escritório e em sua casa. Sua estagiária é sequestrada por homens supostamente ligados ao Ku Klux Klan. Tudo faz parte de uma estratégia de pessoas da cidade ligadas a movimentos de supremacia branca para que Jake abandone a causa.

Jake tira sua família da cidade e prossegue na causa. Carl, mesmo sem estudo, entende que a questão é mais racial do que jurídica. Jake deve convencer o Júri que a vida da pequena Tonya valia mais do que a vida dos homens que a agrediram e por isso foram mortos por seu pai.

É assim que Jake ganha a sua causa: pede aos jurados fecharem os olhos e pensarem que o que aconteceu com Tonya poderia ter acontecido com uma menina branca. A empatia dos jurados só é despertada para absolverem o réu se o considerarem como um igual a eles, não como um homem negro acusado de um crime.


REFERÊNCIAS

GRISAHN, John. Tempo de matar. Publicado pela primeira vez em 1989.

OLIVO, Luis Carlos Cancellier. MARTINEZ, Renato de Oliveira. Direito, literatura e cinema. Publicado nos Anais do II CIDIL, V. 2, N.1, JUL/2014.

TEMPO DE MATAR. 1996. Título original: A time to kill. Diretor: Joel Schumacher. Escritores: John Grisham (romance), Akiva Goldsman (roteiro). Elenco: Matthew McConaughey, Sandra Bullock, Samuel L. Jackson.


Leia também:

A justiça negocial no processo penal e o princípio da necessidade


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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