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Somos um Sistema Penal Autoritário?


Por Mariana Py Muniz Cappellari


Quando ainda em férias, tive a oportunidade de concluir a leitura da tese de doutorado de Christiano Falk Fragoso, publicada pela editora Lumen Juris, com o título “Autoritarismo e Sistema Penal”. O autor, logo após conceituar sistema penal, poder, autoridade e autoritarismo, faz uma robusta análise do autoritarismo no Sistema Penal Nazista, desde o seu percurso histórico até as suas ideias chaves, perpassando pela criminologia, direito penal e direito processual penal na Alemanha Nazista. Posteriormente, ele ingressa no nosso Sistema Penal Brasileiro contemporâneo, realizando um cotejo extraordinário entre esses dois sistemas, já que a leitura é bastante rica e de profundidade, mas de uma clareza ocular, o que para mim é um mérito do escritor, haja vista que comungo da ideia de que os textos acadêmicos assim como as decisões judiciais, devem revelar-se claros e de fácil apreensão.  

Várias coisas em sua obra nos impressionam, mas, com certeza, a similitude que encontramos entre as políticas criminais do Sistema Penal Nazista e do Sistema Penal Brasileiro contemporâneo, é o que talvez mais nos impressione.

Christiano (p. 385-386) deixa claro que o fenômeno do autoritarismo exige a sua compreensão a consideração de quatros contextos: o do abuso na constituição ou exercício do poder de autoridade, o qual se caracteriza quando a autoridade é ilegítima ou ilegalmente constituída ou exercida; o do regime político caracterizado por se opor à existência ou ao pleno funcionamento das instituições democráticas e dos direitos individuais; o da ideologia política que defende concepções anti-igualitárias e anti-individualistas da sociedade, colocando a ordem e a segurança como vetores principais; e o do fenômeno psicológico, quando, então, a faceta do autoritarismo advém de concepções maniqueístas e arraigadas do mundo; da criação dos pertencentes ao grupo de fora ou de dentro; da cada vez maior necessidade de ordem e de segurança; da obediência à autoridade e apego às normas convencionais; do privilégio à autoridade, em detrimento do indivíduo; da propensão à intolerância; da tendência à seletividade e a raciocinar por meio de preconceitos e estereótipos

Com toda a certeza, no âmbito Brasileiro, é mais do que evidente a presença gritante do quarto contexto apresentado pelo autor, qual seja, o autoritarismo enquanto fenômeno psicológico, ao menos, é o contexto que talvez tenhamos mais chance a uma primeira vista de apreender.

Entretanto, a obra nos coloca que mesmo antes dos nazistas, a expansão da legislação penal Alemã já era uma constante em sua história, tal como acontece na atualidade, com o advento da implantação das políticas neoliberais em todo o mundo. Além disso, a alavanca para a escalada nazista muito se deu diante as inseguranças sociais e econômicas enfrentadas pela Alemanha a partir da crise de 1929, o que levaria o povo a encarar até a democracia como um problema. A crise econômica e a ‘burguesia assustada’ (p. 149) teriam sido a base social para a eclosão do nazismo, na medida em que alimentavam o medo no interior da sociedade, fazendo, assim, emergir o autoritarismo psicológico-social. Qualquer semelhança com o momento atual que vivemos em nosso país chega a assustar!

Mas não paramos por aqui, e nem poderíamos nesse pequeno espaço percorrer toda a tese do autor, o que não é nossa pretensão, ficando desde já uma ótima dica de leitura a quem se interessar; o fato é que diante o nosso contexto, interessa também aduzir que Christiano dá conta de que para os juristas nazistas o processo penal da República de Weimar conferia direitos demais aos indivíduos, o que contribuiria para a leniência e para a perda de autoridade da justiça criminal (p. 188). É que as ideias-chave do sistema penal nazista era a segurança da comunidade do povo, o são sentimento do povo alemão, o que redundava na prevalência dos interesses da comunidade sobre os direitos do cidadão acusado.

Não sem razão o autor se deita sobre o instituto da prisão preventiva na disciplina nazista que dentre outras hipóteses permitia o decreto da mesma com base apenas na gravidade e reprovabilidade do fato. Os nazistas, por outro lado, mas ainda dentro do processo penal, promoveram alterações tais como a criação de novos tribunais; a restrição da independência do juiz frente ao Poder Executivo; o aumento da discricionariedade do juiz frente ao acusado; o aumento dos poderes do Ministério Público em detrimento da defesa; o encurtamento dos ritos processuais; a abolição da reformatio in pejus; a violação da coisa julgada, entre outros.

A base da criminologia nazista era biológica e determinista, como já sabemos, sendo que no interior do direito penal nazista se recolhe diversas tendências, as quais segundo Christiano são expansivas, materializantes, subjetivantes, eticizantes e funcionalizantes. Estas tendências já existiam, mas foram radicalizadas pelo nazismo em favor do seu projeto de poder. Assim, abandona-se o princípio da legalidade e da proteção exclusiva dos bens jurídicos, adotam-se várias disposições de um direito penal da vontade, da periclitação e de autor, pervertem-se os conceitos de antijuridicidade e de culpabilidade, estendem-se os crimes omissivos, são introduzidas penas mais duras e medidas de segurança, entre outros.

Por isso, o próprio autor dá conta da similitude entre os sistemas penais alemão nazista e brasileiro contemporâneo, aduzindo, no entanto, que nesse último as práticas autoritárias e punitivas são veladas em um discurso que quer se apresentar como neutro (p. 388). Por certo, não se advoga pela aniquilação expressa do inimigo, mas os discursos se valem de formulações tão abertas e ambíguas, as quais permitem que na prática tenhamos um verdadeiro direito penal do inimigo (p. 388).

Em suas palavras,

“nesse diapasão, o princípio da legalidade, principalmente nas exigências de certeza e de proibição de analogia, tem sofrido ataques terríveis. O conceito de bem jurídico tem sofrido notável liquefação, perdendo totalmente capacidade limitativa de expansão de punição, transformando-se, ao contrário, em motor dessa expansão. São notáveis, na regulação (e, principalmente, na interpretação) dos tipos e das sanções penais, tendências à adoção de diversos aspectos de direito penal da vontade, de periclitação e de autor. Nota-se, claramente, uma tendência à expansão dos crimes omissivos, seja pela edição de leis penais, seja pela sub-reptícia prevalência da ideia de antijuridicidade material sobre a antijuridicidade formal. A culpabilidade do autor tem sido, cada vez mais, admitida na doutrina e na jurisprudência, deixando a porta escancarada para apenações calcadas em estereótipos, e não nos injustos praticados. As tendências nacionais e mundiais ao endurecimento das penas e de sua execução (principalmente daquelas que normalmente se abatem sobre as camadas mais desfavorecidas da população) e a (re-)introdução de medidas de segurança rígidas mostram que, na hora da verdade, o sistema penal tende a ficar incrivelmente duro.” (FRAGOSO, 2015, p. 387/388)

Concordo inteiramente com o autor quando afirma que a análise dos sistemas revela preocupantes ‘coincidências’ em propostas político-criminais, quanto mais quando verificamos as últimas decisões proferidas pela nossa Suprema Corte, das quais se denota verdadeira influência midiática e populista punitiva, sem sequer se colocar em pauta a nossa fartíssima legislação penal. Na verdade, Christiano mais uma vez tem razão:

“O grande problema da criminalidade, nas sociedades atuais, não é tanto o da quantidade de crimes, mas sim o palpável risco de que sua repressão leve as sociedades a níveis intoleráveis de autoritarismo.” (FRAGOSO, 2015, p. 389)

Parece-nos, então, que não há saída, em detrimento ao levante do Estado policialesco, que dormita no interior de todo o Estado de Direito, conforme Zaffaroni já anunciou, cumpre-nos a defesa veemente da democracia, ainda que esta em âmbito brasileiro se mostre frágil e em constante ataque.


REFERÊNCIAS

FRAGOSO, Christiano Falk. Autoritarismo e Sistema Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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