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Sim, chegamos a 800 mil presos no sistema prisional brasileiro

Sim, chegamos a 800 mil presos no sistema prisional brasileiro

Segundo o banco de monitoramento de prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o país atingiu há duas semanas o total de 800 mil presos no sistema carcerário, considerando os indivíduos condenados e os que ainda aguardam julgamento (aproximadamente 42%).

O déficit de vagas até o ano de 2016, conforme os dados do INFOPEN, era de 358.663 (trezentos e cinquenta e oito mil, seiscentos e sessenta e três vagas), o que denota a ausência de milhares de vagas no sistema prisional, bem como um aumento exponencial do encarceramento no país.

Chegamos a 800 mil presos

Diferente do que é demasiadas vezes divulgado pela mídia, a maior porcentagem de pessoas presas hoje no país decorre de crimes patrimoniais, quais sejam, furtos e roubo primordialmente, e tráfico de drogas. A ocorrência desses crimes ocorre de forma muito mais exacerbada que crimes cometidos com violência contra à pessoa, como homicídios, latrocínios, estupro e estupro de vulneráveis.

Conforme as pesquisas realizadas pelo INFOPEN no sistema prisional brasileiro, os jovens compõem a maior porcentagem dos presos atualmente, e realizando uma análise com um recorte racial, observa-se que a maioria dos indivíduos presos são negros, com baixo poder aquisitivo e baixa escolaridade, o que demonstra claramente a seletividade no sistema penal.

Segundo os estudos realizados, estima-se que aproximadamente 58% dos indivíduos privados de liberdade são jovens entre os 18 a 29 anos de idade. Essa situação é extremamente delicada, observado o estigma social criado por esses egressos do sistema prisional e a oportunidade de posteriormente voltar ao convívio social e ao mercado de trabalho.

No tocante ao encarceramento feminino e analisando os dados do INFOPEN, é notório o aumento exponencial das condenações e prisões no sistema prisional brasileiro, ensejando inúmeras reflexões e debates primordialmente, pois atinge-se um determinado grupo social compostos por mulheres jovens, com filhos, baixa escolaridade, presas por tráfico de drogas ou transporte a terceiros em condições de vulnerabilidade social, sendo o quadro agravado quando trata-se das mulheres negras (aproximadamente 60% das mulheres encarceradas no Brasil).

Posteriormente, serão analisados alguns aspectos da estigmatização após o cárcere, etiquetamento social e a marginalização como fatores determinantes e de grande impacto em todos que passam pelo sistema carcerário, bem como serão abordados alguns aspectos relativos ao labbeling approach e a seletividade penal, presente em demasia nos indivíduos privados de liberdade.

Os problemas inerentes a estigmatização social dos egressos do cárcere são demasiado complexos, isso pois, boa parcela da sociedade enxerga essas pessoas como inimigos a serem combatidos, ressalta nesse entendimento ZAFFARONI (2006, p. 11): 

La esencia del trato diferencial que se depara al enemigo consiste en que el derecho le niega su condición de persona. Sólo es considerado bajo el aspecto de ente peligroso o dañino. Por mucho que se matice la idea, cuando se propone distinguir entre ciudadanos (personas) y enemigos (no personas), se hace referencia a humanos que son privados de ciertos derechos individuales en razón de que se dejó de considerarlos personas, y esta es la primera incompatiblidad que presenta la aceptación del hostis en el derecho con el principio del estado de derecho.

O tema em si enseja muitas discussões tendo em vista as diversas áreas de conhecimento envolvidas, economia, sociologia e criminologia, sendo fundamental refletir sobre os impactos e problemas inerentes ao aumento exacerbado do encarceramento feminino no que tange ao tráfico de drogas, primordialmente pelo recorte de gênero possível de análise nessas questões. 

O tráfico possibilita que as mulheres continuem dentro de casa realizando suas tarefas domésticas, cuidando dos filhos, possuindo rendimento financeiro e reproduzindo a divisão sexual do trabalho, observando-se que nas relações afetivas com os parceiros há grande parcela de influência conjuntamente a essas questões.

Observa-se no encarceramento feminino e o tráfico de drogas, a influência de fatores como a baixa escolaridade, vulnerabilidade social e baixo índice educacional, sendo determinantes para a busca nesse mercado ilícito como forma de sobrevivência decorrentes da falta de oportunidades e estigmatização social.

Outro aspecto preocupante na análise dos dados sobre o sistema prisional, é a seletividade penal. Observado os dados do INFOPEN, resta demonstrado que o encarceramento ocorre para os indivíduos de baixo poder aquisitivo, baixa escolaridade (mais de 60% sem o ensino fundamental concluso), sendo a maioria composta por jovens entre 18 a 29 anos de idade.

Realizando uma análise com recorte racial, observa-se que mais de 50% do sistema prisional é composto por jovens negros, com pequenas diferenças quantitativas em alguns Estados do país. Infelizmente, o racismo estrutural ainda é algo muito presente na sociedade atual, e não restam casos para exemplificar os tratamentos diferenciados e desumanos dados os jovens negros na periferia primordialmente. 

Essa diferença pode ser inclusive observada na divulgação pela mídia, na qual indivíduos brancos que cometeram delitos, como exemplo no tráfico de drogas, são noticiados e divulgados como suspeitos, em contrapartida a divulgação da mídia nos delitos cometidos por pessoas negras, são divulgados como traficantes, vide exemplo do caso que gerou repercussão nacional de Rafael Braga, jovem, negro e da periferia, condenado por tráfico de drogas por possuir 0,5 gramas de maconha, e o único condenado pela lei antiterrorismo na época das manifestações de 2013, por carregar um pinho sol e um alvejante. 

Ainda, o mesmo fora condenado apenas com base no testemunho dos policiais presentes, o que é extremamente delicado em um país com altos índices de abusos e arbitrariedades policiais como o Brasil. Segundo relatório da ONU, realizado pelo Relator Juan E. Méndez, os presos brasileiros relatam cotidianamente casos de tortura e maus tratos, tanto na prisão como nos interrogatórios policiais.

A seletividade penal impacta diretamente na tentativa de ressocialização desses indivíduos no sistema prisional, tentativa pois os dados já demonstraram que a busca efetiva pela reinserção no mercado de trabalho e na sociedade após as práticas delitivas é demasiado difícil para os egressos do sistema prisional, não só pelo preconceito, mas primordialmente pela estigmatização dos egressos do sistema prisional.

Essas questões ensejam a discussão sobre a ineficácia e falência do sistema prisional, que dificilmente cumpre sua função social de ressocialização dos egressos do sistema penal. Da mesma forma que a prisão é considerada por muitos como algo natural e inevitável, muitos se negam a refletir de forma crítica sobre os motivos e circunstâncias que se escondem por trás das prisões, as reais razões do encarceramento de milhares de pessoas, sendo em sua demasia pessoas com baixo poder aquisitivo e baixa escolaridade. Ressalta DAVIS (2018, p. 16), portanto, que:

a prisão funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais.

O aniquilamento social dos egressos do sistema prisional: uma análise sobre a letalidade

O sistema carcerário brasileiro apresenta um quadro delicado, não somente pela quantidade de pessoas presas, mas primordialmente por quem tem sido preso, em demasia jovens, negros, de baixo poder aquisitivo e baixa escolaridade, contribuindo para a estigmatização desses indivíduos e impossibilitando sua reinserção na sociedade e no mercado de trabalho.

No Brasil e na América Latina em sua totalidade, observa-se um aumento exacerbado no número de indivíduos encarcerados, sem uma preocupação efetiva dos representantes sobre a origem do aumento da criminalidade. Ressalta ZAFFARONI (p.1) nesse sentido: 

Es América Latina, y quizá en todo el mundo, es cada vez más claro que la respuesta política es a la proyección mediática y no al hecho mismo de la delincuencia urbana. Urgidos los políticos por la proyección mediática, responden discursivamente y condicionan a ella la respuesta al hecho mismo, al punto de desentenderse de éste. No existen observatorios, estadísticas serias y orientadas a la prevención, nadie se ocupa por investigar con miras preventivas el hecho mismo de la delincuencia urbana, mientras los comunicadores sociales y los políticos sólo se centran en la proyección mediática del hecho y manejan alguna estadística poco confiable y bastante inútil para efectos preventivos. Se enfrenta la construcción de la realidad y no la realidad, a la que nadie intenta aproximarse.

Ainda, como ressalta ZAFFARONI, a sociedade em demasia trata os egressos do sistema prisional como inimigos a serem combatidos, e portanto, não merecedores de direitos e garantias. Os demasiados casos de tortura, maus tratos e mortes nos presídios brasileiros demonstram a ausência de preocupação das autoridades com essas questões.

Uma grande parcela dos indivíduos privados de liberdade possuem problemas e doenças decorrentes da ausência de ventilação adequada, problemas de saúde por saneamento básico inadequado, desnutrição e tuberculose. Nesse sentido, ressaltam (FERREIRA; FERREIRA; ROXO, 2015, p. 4):

Em geral, as condicões de vida diária na prisão promovem a doença. As comorbilidades mais encontradas em prisões mundiais foram: doença mental, hepatopatia, malária, diarreia crónica, escabiose, complexo relacionado com a síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA), miocardiopatia, parasitoses, sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis. Apesar da facilitacão do processo de adoecimento, em alguns países é difícil obter uma taxa de mortalidade prisional fidedigna dado o enviesamento gerado pela subnotificacão e pela libertação seletiva dos indivíduos mais gravemente doentes. O consumo de drogas ilegais é comum e o material injetável é utilizado em condições de improvisamento e conspurcação.

Nesse sentido, demonstra-se claramente a ausência de preocupação das autoridades em viabilizar locais adequados para os indivíduos privados de liberdade. O modelo e organização do sistema prisional é precário na maioria dos presídios brasileiros, impossibilitando uma condição digna de existência.

VARELLA (1999, p. 13), médico que possui um trabalho efetivo com os presos, na obra estação Carandiru retrata a história de aniquilação social de inúmeros indivíduos. Retratando o relato de um preso aduz:

– Antigamente trancava tantos numa cela, que precisava fazer rodízio para dormir. Metade ficava em pé, quietinho para não acordar os outros. Na troca de turno é que aproveitava para urinar. Precisava comer pouco, porque não podia evacuar o intestino no xadrez. Só quarta e sábado, quando destrancava por uma hora para o banho e as necessidades. Castigo durava noventa dias, não era essa moleza de trinta como agora.

Os relatos apresentados pelos presos nessa obra são estarrecedores, indivíduos que encontram-se completamente aniquilados por um sistema no qual a ressocialização já tornou-se utopia. Indivíduos que em demasia cometeram pequenos delitos patrimoniais como furtos e roubos, bem como foram presos com pequenas quantidades de drogas, ingressam nesse sistema e acabam, por questões de sobrevivência, entrando em facções para manterem (ou tentarem manter) suas vidas.

Um retrato delicado da ausência de preocupação com a reinserção desses indivíduos na sociedade, denotando a falência do sistema prisional nesses moldes em sua totalidade.


REFERÊNCIAS

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018.

VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru, Companhia das letras, São Paulo, 1999.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. El enemigo en el derecho penal. Ediar, Universidad de Buenos Aires, 2006.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Delincuencia urbana y victimización de las víctimas. Profesor Emérito y Director del Departamento de Derecho Penal y Crimilogía. Faculdad de Derecho UBA.

FERREIRA, Pedro Gonçalo; FERREIRA, Jorge António; ROXO, Paulo Cravo. Constrangimentos ao controlo da tuberculose no sistema prisional. Revista portuguesa de saúde pública, 2015, 33 (1), 71-83. Disponível aqui. Acesso em: 18 de jul. de 2019.


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Paula Yurie Abiko

Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal - ABDCONST. Pós-Graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE).

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