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A cultura do cancelamento, o linchamento virtual, e suas repercussões jurídicas

Por Felipe Menezes. A cultura do cancelamento tem se tornado cada vez mais uma pauta recorrente nos meios digitais, onde a interação social e a distribuição de notícias é ininterrupta, fazendo com que essa nova realidade limitadora de privacidade de informações e de julgamentos passe a se estabelecer como um novo cotidiano.

A cultura do cancelamento

Em um mundo onde as interações interpessoais estão simultaneamente inscritas em interfaces digitais e no plano material ou biossocial, uma simbiose entre realidades virtuais e materiais se estabelece, onde o que existe virtualmente se estende ao que seria real. Para Haraway (2009), todos tornam-se ciborgues, “[…] um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção”. Os indivíduos passam a ser um condensado de imaginação e realidade material.

No contexto superpositivo em que a internet funciona através das redes sociais, a vigilância de todos, por todos, é constante, e em larga escala. Ao sinal de qualquer detecção de erro, indivíduos diversos, se unem com o intuito de rechaçar a figura do errante, julgando-o culpado a priori, através de em código de justiça não institucional. A situação tende a se agravar, com base na fama e no conhecimento geral do errante, já que no contexto midiático o “erro” se torna mais rentável e interessante para os meios de comunicação exploradores.

E é nesse contexto que a prática do cancelamento virtual toma forma, onde um indivíduo comete um ato julgado reprovável por uma maioria, e, baseado naquele movimento, esse mesmo indivíduo é tido como rechaçável, assumindo um perfil de criminoso para os demais.

E é através do cancelamento e esse ar criminal por parte do errante, que esses indivíduos julgam necessário fazerem ouvidos sua reprovação, através de um linchamento virtual, que consiste nesse grupo de pessoas, atacando a parte errata, através da expressão de toda a sua indignação, com comentários e ofensas pessoais.

Analisando a cultura do cancelamento, tem-se em vista uma ambição por justiça social, que, embora seja um sentimento eticamente louvável, ao submeter outrem a um linchamento virtual, para que através deste, ela sofra alguma consequência por suas atitudes, é tomar para si o direito de punir, o que, por não estar embasado em uma camada de imparcialidade, à colocando sobre a égide moral, daqueles que o julgam, já os torna naturalmente injustos.

Muito desse comportamento é intrínseco do ser humano, contudo, por se tratar da internet, muitas vezes os linchadores acreditam serem anônimos, só mais um no meio de uma multidão, e que, com isso, acreditam que a impunidade lhes é assegurada, porém, quando se trata de cancelamento e, por consequência, o linchamento virtual, o Código Penal prevê vários crimes que podem ser configurados em determinadas situações diferentes.

O discurso de ódio e a incitação à violência, são, de início, os que ferem os direitos à dignidade humana, protegida pela Constituição vigente de 1988, em seu Art. 1º. Já em seu Artigo 5º a Carta Magna protege os direitos à intimidade, privacidade, honra e imagem, que podem vir a ser também violados pelo cancelamento virtual, devido à exposição da vítima através dos posts e interações relativas ao ato.

O Código Penal brasileiro, em seu Capítulo V, do Título 1º, da sua parte especial, reserva a proteção aos crimes contra a honra, como a calúnia, difamação e injuria, nos seus Artigos 138, 139, e 140, respectivamente. E são esses crimes os que se tornam os mais praticados no meio virtual, já que se tratam de ofensas aos atributos morais, intelectuais e físicos das vítimas, e que muitas vezes são os focos dos insultos direcionados pelo cancelamento virtual.

É de suma importância uma atenção especial para os crimes de injúria racial nos meios virtuais, que também estão entre os mais praticados e menos punidos, devido à dificuldade de enquadramento dos autores dos comentários e à quantidade de denúncias realizadas.

Somente no ano de 2019, a Safernet Brasil recebeu 8.337 denúncias de racismo na internet. O dado sozinho pode não demonstrar a amplitude e extensão dos crimes de ódio que ocorrem em ambientes virtuais, mas dá uma boa ideia do quão presente o racismo é na internet, pois 8.337 denúncias são aproximadamente 23 denúncias por dia, quase uma por hora, o que significa que existem mais crimes de racismo online do que tráfico de pessoas (509 denúncias), intolerância religiosa (1.084 denúncias), maus tratos contra animais (1.142 denúncias) e neonazismo (4.244) somados.

Com relação aos crimes de injúria racial, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) estabelece, no caput de seu Artigo 2º, que “a disciplina no uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”, também determina as regras em que essa liberdade pode ser limitada: em respeito aos “direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais”. Ou seja, a liberdade de expressão, no mundo offline e também online, está sujeita a restrições para a garantia de demais direitos fundamentais.

A relação dos crimes raciais através dos meios de comunicação, como é o caso da internet, é tipificado pela Lei nº 7.716, de 5 janeiro de 1989, que traz em seu Art 20 que praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, resulta em reclusão de um a três anos e multa. E o seu § 2º, em específico, traz que, se qualquer das condutas previstas no caput é cometida por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a pena será de reclusão de dois a cinco anos e multa.

Tem-se, então, que, apesar dos crimes cibernéticos serem uma modalidade criminosa relativamente nova, o enquadramento de uma gama de atos reprobatórios pode ser feita com base em tipos criminais já existentes, uma vez que o ato em si permanece o mesmo, já tipificado, sendo apenas a forma como se pratica, uma novidade.

Apesar da grande dificuldade de enquadramento dos sujeitos ativos nos crimes virtuais, já que a identificação da parte no meio digital é muito mais complexa que nos crimes ditos comuns, onde as identificações físicas e biométricas são relativamente simples, a cada dia novos tipos criminosos são aceitos pelos tribunais, novos precedentes e jurisprudências são criados, e cada vez mais, a responsabilização por delitos cometidos em meios virtuais, se torna mais um braço natural do direito.


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Pedro Ganem

Redator do Canal Ciências Criminais

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