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A tortura “democrática” no ensino jurídico brasileiro


Por Bruno Silveira Rigon


Circulou recentemente nas redes sociais um vídeo de um famoso doutrinador, professor de direito penal e membro do Ministério Público como propaganda de um curso de pós-graduação em ciências criminais em que oferece uma “breve aula” gratuita sobre a histórica decisão do STF (HC 126.292), com o intuito de demonstrar a qualidade do conteúdo do curso.

O tema tratado na aula é a execução antecipada da pena e o princípio da presunção de inocência. Desde logo, o docente manifestou-se favorável à decisão do Supremo. Até aqui tudo bem. Embora não concordemos com o julgado do STF e seja discutível sua posição, defendemos o debate crítico e sadio sobre a decisão como vem sendo travado pelos atores do direito. No entanto, um trecho do pequeno vídeo divulgado causou polêmica na web (tanto que o coordenador do curso postou outro vídeo para esclarecer a controvérsia e, após, o próprio professor fez o mesmo). O problema se deu na argumentação exposta pelo doutrinador para convencer o público da correção de sua tese e, depois, no vídeo de esclarecimento.

Não queremos, em nossa análise, atingir a intenção do autor com a sua fala (é preciso ressaltar que no vídeo de esclarecimento ficou suficientemente claro que ele não é, ao menos conscientemente, um defensor da tortura), da mesma forma que achamos incorreto interpretar seu discurso de acordo com nossos próprios desejos (como a projeção de sua própria intolerância que alguns intelectuais fazem sobre o autor, rotulando-o de autoritário e fascista simplesmente por considerar suas obras como reprodutoras de uma dogmática jurídica acrítica, que ajuda a manter um senso comum teórico no imaginário dos juristas, recusando-se, por isso, a olhar os vídeos). Pretendemos, sim, compreender o dito e o não dito do discurso proferido no vídeo, independentemente da intenção do autor ou de nosso desejo, considerando que esse “distanciamento é condição da compreensão” (RICOEUR, 2013).

Para sustentar a relativização do princípio da presunção de inocência o doutrinador arguiu que, quando se fala em princípios e em direitos, basicamente não existem direitos absolutos. Segundo ele, antigamente dizia-se que só existem dois direitos absolutos: o direito de não ser torturado e o direito de não ser escravizado. De acordo com sua fala, nem a vida é um direito absoluto, já que existe previsão constitucional da pena de morte em casos de guerra. Hoje, por outro lado, até mesmo o direito de não ser torturado vem sendo mitigado pelos EUA e alguns países da UE, principalmente depois dos atentados ao World Trade Center e dos atos patrióticos decretados pelo governo Bush.

Nas palavras do professor:

“O mundo está se rendendo para um conceito diferente, principalmente por conta desse terrorismo islâmico que a gente tem visto aí o tempo inteiro”;

“na Europa se discute a possibilidade oficial da tortura. Não estou dizendo o pau de arara, a tortura clandestina, a tortura de calabouço. Não é isso não. Mas a tortura oficial praticada pelo Estado”;

“Então, supostamente o único direito absoluto que se tem é o direito de não ser escravizado. No mais, não existem direitos absolutos. Nem a presunção de inocência”.

Note-se que no discurso menciona-se o exemplo da mitigação da regra que proíbe a tortura no âmbito internacional diante da guerra ao terrorismo[1] para afirmar que não existem direitos absolutos (exceto o direito de não ser escravizado) e, por conseguinte, justificar a relativização da presunção de inocência na decisão do STF. O docente em sua fala não diz expressamente ser favorável à “tortura oficial”. Em sua defesa no segundo vídeo, alega que era sua missão enquanto professor explicar o que está acontecendo no mundo, não podendo se omitir quanto a esse fato.

Sim. O docente não poderia se omitir. Ele está certo sobre isso. Só que é preciso coerência no discurso. Se ele não podia se omitir a respeito do que está acontecendo no mundo (processo de relegitimação da tortura com o pretexto de combate ao terror) também não poderia ter se omitido de manifestar seu posicionamento contrário a tal delito, ressaltando que essa é uma prática típica de estados de exceção[2], contrária ao que preveem os tratados internacionais de direitos humanos e a nossa Magna Carta (ainda mais considerando que o professor se diz defensor do minimalismo penal e dos direitos humanos, o que, embora possa advogar em seus livros, não transparece no seu entendimento favorável à decisão no HC 126.292). Esqueceu-se o doutrinador que a prática sistemática de tortura por um Estado contra um grupo de indivíduos é um crime contra a humanidade e pode ser considerado como terrorismo de Estado.

O discurso quando se refere a “terrorismo islâmico”, “tortura oficial”, “o mundo está se rendendo a um novo conceito”, etc., está olhando o tratamento dado ao terrorismo pelas grandes potências mundiais, o que, segundo Edgar MORIN (2011, p. 117), ajuda a camuflar os terrorismos de Estado cometidos por eles. De acordo com o pensamento do autor,

“(…) a palavra islamita, tal como é usualmente empregada nas mídias ocidentais, reduz tudo o que é islâmico a um islamita e todo islamita a um terrorista em potencial, o que impede que se perceba o aspecto complexo do Islã”.

Por isso o discurso que cita “terrorismo islâmico” é extremamente problemático, para dizer o mínimo. Nessa conjuntura, a lição de Tzvetan TODOROV (2012, p. 62) se mostra imperiosa:

“Estado que legaliza a tortura não é mais uma democracia”.

Além disso, ao expressar com neutralidade o fato de que pessoas estão sendo torturadas por agentes estatais em outros países e usar isso como argumento para justificar a relativização do princípio da presunção de inocência, o discurso acaba por transmitir a mensagem de que a “tortura oficial” cometida nas democracias ocidentais não só é “natural”, como também legítima. O sentido que o discurso possui é evidente: Se é possível relativizar a proibição da tortura, por que não mitigar a presunção de inocência? Ou seja, considera-se, a priori, que a “tortura democrática” é legitima e, portanto, também seria legítima a execução antecipada da pena.

Ora, a equivocada mitigação de direitos humanos em outros Estados não pode servir de fundamento para a relativização de direitos fundamentais em nosso ordenamento jurídico. Ademais, é preciso salientar: não se trata de mera restrição de direitos realizada com base em alguma teoria dos princípios, mas o que se verifica em Guantánamo trata-se sim de uma autêntica zona de exceção, na qual esses direitos fundamentais são suspensos e os detentos são literalmente abandonados pelo direito.

Ali, naquele campo, resta somente a vida nua, a vida meramente biológica, desprovida de qualquer proteção jurídica. Um espaço de exceção, para utilizar a expressão de Giorgio Agamben. Logo, a comparação realizada pelo autor mostra-se descabida, já que contrapõe uma situação em que a norma é a exceção, o que alguns chamam de não direito, com uma situação que há uma relação jurídica dentro de um Estado de Direito (por mais que possa ser criticada a violação do princípio da presunção de inocência ainda se está dentro de um Estado formalmente democrático).

No entanto, o doutrinador realmente tem razão em um ponto específico: “nosso primeiro problema hoje aqui é de interpretação”. Mas, ao contrário do que ele pensa, não é a nossa má interpretação de seu discurso, mas os silêncios, as omissões e os argumentos da forma como foram utilizados na aula ministrada que, no mínimo, dão a entender que no discurso o docente atribui legitimidade à prática da “tortura oficial e democrática”. Se a interpretação fosse absurda, como ele acredita, não haveria tantos outros que entenderam de forma diversa. Simples assim. O problema sempre está no outro. O outro fez uma má interpretação. O outro não sabe interpretar. O outro possui um déficit cognitivo. O outro não sabe nada sobre direito. O outro é completamente alheio ao conhecimento do direito penal. Somos idiotas, então.

As acusações (“interpretações absurdas”, “má interpretações”, etc.) e os argumentos de autoridade utilizados (“professor e escritor há muitos anos”, “defensor do minimalismo e dos direitos humanos”, “não me conhecem”, entre outros) demonstram a atuação dos mecanismos de defesa da psique e a ausência de uma avaliação autocrítica de sua postura enquanto professor e formador de opinião, juízo que faltou no seu vídeo de esclarecimento.

A posição do professor sobre a execução antecipada da pena, embora discutível, não é o ponto fundamental do que nos propomos analisar, mas sim a necessidade que, enquanto educador, utilize fundamentos jurídicos consistentes e coerentes para possibilitar um saudável debate acadêmico, e não um discurso argumentativo que, pelo menos implicitamente e inconscientemente, considere a tortura praticada pelo Estado um ato jurídico legítimo.

Para finalizar, gostaríamos de dizer que lamentamos profundamente a prisão política e a tortura que o pai do docente sofreu durante a ditadura civil-militar. Também tivemos vítimas próximas em nossas famílias e círculo de amigos e sabemos como são os efeitos negativos desses eventos traumáticos em nossas vidas e na sociedade. Talvez o doutrinador ainda precise aprofundar suas reflexões sobre essa experiência horrenda de sua família nos anos de chumbo para compreender a responsabilidade ética que o educador – sobretudo o professor de direito penal e processual penal – possui nos tempos atuais. Referimo-nos aqui ao imperativo, proposto por Adorno, de educar para que a barbárie não se repita (ADORNO, 2010). Que esta “polêmica” pelo menos sirva para esta reflexão.

Senão a única coisa que esse lamentável episódio deixará é: o vídeo sempre será lembrado como a pior publicidade que um curso de pós-graduação em ciências criminais poderia fazer.


REFERÊNCIAS

MORIN, Edgar. Rumo ao Abismo?: Ensaios sobre o Destino da Humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

RICOEUR, Paul. Hermenêutica e Ideologias. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

TODOROV, Tzvetan. Os Inimigos Íntimos da Democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012


NOTAS

[1] O que é um processo que realmente existe e, inclusive, já escrevemos a respeito do assunto. Sobre isso, ver: RIGON, Bruno Silveira; SILVEIRA, Felipe Lazzari da. A Relegitimação da Tortura Diante da Guerra ao Terror, Revista de Estudos Criminais, v. 58, p. 153-180, 2015.

[2] Sobre isso, ver: AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002; AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Homo Sacer II, 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

BrunoRigon

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