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Compliance e controle social

Compliance e controle social

O exercício do poder pelo controle não é nada novo em nossa sociedade. Em Vigiar e Punir, FOUCAULT identifica a utilização de novas técnicas em instituições como escolas, conventos, oficinas e exército, ancoradas na disposição do corpo como objeto e alvo de poder: corpo dócil é aquele que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado.

Um corpo que pode ser formado e lapidado, que sobre ele possa ser exercida uma coerção sem folga e que lhe possa ser imposto uma mecânica de funcionamento com indicação de padrões de comportamento que levem à economia, organização interna e eficácia dos movimentos. Há uma contabilidade sobre a utilização do corpo, com a manipulação calculada de seus elementos, gestos e comportamentos.

A mecânica do poder se constrói a partir de uma política de coerções “não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segunda a rapidez e a eficácia que se determina”. São técnicas que “definem um certo modo de investimento político” e que já desde o século XVII amplia seu alcance, “como se tendesse a coibir o corpo social inteiro”.

A racionalidade dos clássicos não a inventa, ela a aprimora, apresenta-lhes novas dimensões e instrumentos mais precisos para a contabilidade do corpo e a ampliação do controle (FOUCAULT, 2007, p. 117-121).

Modernamente, a implementação das políticas de controle do crime emerge de uma nova experiência coletiva do crime e da insegurança, ordenada e conduzida pelos arranjos sociais, culturais e econômicos.

São políticas e práticas que correspondem à adaptação do controle do crime aos problemas práticos criados pela complexidade do mundo pós-moderno e suas novas relações sociais decorrente dos avanços, dentre tantos outros, da economia global (GARLAND, 2008, p. 413-414).

Esse novo perfil criminológico advém da insatisfação social frente às estratégias afetas ao correcionalismo penal-previdencialista, modelo característico do Welfare State que preconizava a reinclusão do indivíduo no tecido social, em vez de sua exclusão ou eliminação (GARLAND, 2008, p. 10-11).

Nos EUA e na Grã Bretanha – países objetos do estudo do autor e de onde surgem os modelos aqui apresentados –, o previdencialismo penal começou a ser questionado a partir das crises econômicas do início dos anos setenta.

Os elevados índices de reincidência, alinhados à aparente deficiência da aparelhagem criminal em se adaptar à expansão da criminalização fez com que modelo penal previdenciário fosse visto como ineficiente e sua finalidade falaciosa (GARLAND, 2008, p. 20-21).

Foi SUTHERLAND quem primeiramente identificou que a prática de crimes poderia ocorrer em todas as camadas sociais, independentemente de classe ou condição social, e que existiam sim práticas ilícitas ocorrendo no ambiente empresarial, os chamados crimes de colarinho branco.

Atribuiu o cometimento de delitos a todas as classes da sociedade, pois esclareceu que a conduta desviada não pode ser imputada apenas às disfunções ou inadaptação dos sujeitos de classe baixa, senão a um processo de aprendizagem efetiva dos valores criminais, o que pode se suceder com qualquer cultura e em qualquer classe (SUTHERLAND, 2015).

Isto tornou questionável a pretensão de controle direto pelo Estado principalmente em meio à atividade privada empresarial. Notadamente quando se refere à persecução policial ou fiscal, o ente público encontra dificuldades em investigar intramuros em organizações empresariais complexas, e como consequência resta uma quantidade elevada de delitos cometidos nesse âmbito, cujos autores até então permaneciam impunes (RAGUÉS I VALLÈS, 2014, p. 459).

A tarefa do Estado em prover níveis adequados de segurança reconhecidamente falhou, altas taxas de criminalidade passaram a ser percebidos como um fato social normal e que provinham de diversos setores da sociedade, e uma das formas encontradas como resposta a essa nova realidade foi o reconhecimento da necessidade de se aliviar a responsabilidade do Estado como principal provedor de segurança.

O controle do crime é remodelado em bases diluídas e compartilhadas, e a sociedade civil passa a fazer parte desse programa através de uma prevenção proativa: aquilo que GARLAND chama de parcerias preventivas, que compreende a divisão da responsabilidade pelo controle do crime com a sociedade e a criação de políticas e infraestrutura de prevenção do crime além do Estado.

Essas políticas “envolvem a invenção de novas formas de pensar e agir, bem como o surgimento de novos hábitos por parte de organizações e atores privados”, e são métodos que buscam a prevenção do delito através da redução de oportunidades de práticas delitivas, a partir do estabelecimento de uma infraestrutura de governança própria dos atores privados, angariados em um repertório de técnicas e conhecimentos de controle do crime até então impensados.

A reinvenção está na redistribuição e no redirecionamento das responsabilidades pelo controle do crime, não mais se atribuindo exclusivamente à esfera estatal esta atividade. Introduzem-se à cultura política do controle novas racionalidades, como a responsabilidade de outros atores sociais na prevenção do delito.

Agora, admite-se uma insuficiente presença do Estado, cujo desfecho paradoxal é o aumento do seu poder por intermédio de novos métodos de exercício do poder punitivo.

O Estado não mais reclama para si o controle pleno da justiça criminal e até mesmo admite governar à distância (GARLAND,  2008, p. 313-374) em prol de maiores níveis de segurança e gerenciamento dos riscos criados pelas relações sociais e econômicas, que cada vez mais ocorrem em um fluxo maior.

É então a partir dessa ideia de autorregulamentação que ancora-se a legislação anticorrupção americana e incorporada em nosso ordenamento pela Lei 12.846/2013, iniciando assim a era do compliance.

Devido à globalização dos negócios como consequência da evolução tecnológica e do mundo pós-moderno, essas práticas cruzaram as fronteiras estadunidenses e imprimiram valores relacionados à responsabilidade empresarial a nível global, dando os primeiros contornos às ideias de governança corporativa e cultura da conformidade (BIEGELMAN, 2010. p. 18-19).

Sob essa perspectiva, com a proliferação dos diversos diplomas anticorrupção, fica devidamente clara a pretensão legislativa global em se alinhar ao modelo criminológico pós-moderno no que se refere à ocorrência dos ilícitos de corrupção empresarial.

Dessa forma, caberá às próprias corporações a tarefa de gerenciamento desses riscos através do compliance, que virtualmente é a mais nova tecnologia legal para o controle do crime, pois, como enxergamos, utiliza os conceitos clássicos indicados em Foucault e Garland: a gestão dos riscos empresariais por intermédio do controle dos corpos dóceis, com a implantação de processos de autorregulamentação que asseguram a participação dos atores privados neste processo.


REFERÊNCIAS

BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Foreign corrupt practices act compliance guidebook: protecting your organization from bribery and corruption. New Jersey: John Wiley & Sons, 2010.

FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 34. Ed. Petrópolis:Vozes. 2007.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

RAGUÉS I VALLÈS, Ramón. El fomento de las denuncias como instrumento de política criminal contra la criminalidad corporativa: whistlebloing interno vs. whistlebloing externo. In: PUIG, Santiago Mir; MARTÍN, Mirentxu Corcoy Bidasolo E Víctor Gómez (Org). Responsabilidad de la empresa y compliance: Programas de prevención, detección y reacción penal. Madrid: Edisofer LF, 2014.

SUTHERLAND, Edwin H. Crimes de Colarinho Branco. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2015.


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