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Dispensa indevida de licitação: dolo e prejuízo ao erário

Dispensa indevida de licitação: dolo e prejuízo ao erário

Para quem se aventura a integrar os quadros da Administração Pública brasileira, seja por meio de cargo eletivo ou de outra natureza, um dos temas mais tormentosos, certamente, é o que trata da licitação e dos contratos, questão sempre sujeita a uma diversidade de orientações e entendimentos, fazendo surgir insegurança jurídica.

O art. 3.º, caput, da Lei n.º 8.666/93, com redação determinada pela Lei n.º 12.349/2010, estabelece que a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.

Vale enfatizar, para celebrar contratos, a Administração Pública deve proceder à licitação, com a finalidade de garantir a isonomia dos concorrentes e, também, visando selecionar a proposta mais vantajosa para si.

Este é um ponto de partida para que se possa analisar a efetiva caracterização do tipo penal previsto no art. 89 da Lei de Licitações, que tem a seguinte redação:

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Releva dizer: o elemento subjetivo que caracteriza a conduta é o dolo, isto é, a vontade livre e consciente de indevidamente dispensar ou inexigir licitação, estando o agente ciente da ilicitude dessa omissão.

Em outras palavras, para que se tenha por configurado esse crime, não basta, por si só, o fato de dispensar ou inexigir licitação, afigurando-se imprescindível que o agente esteja consciente de que o descumprimento desse protocolo é uma infração à lei.

E é ônus que incumbe ao Ministério Público demonstrar que o agente, ao dispensar a realização de licitação ou torná-la inexigível, atuou de forma livre e consciente no sentido de burlar a norma legal.

Há julgados do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, quando o administrador decide amparado em parecer jurídico, tem-se por afastado o dolo de sua conduta, desnaturando-se o crime do art. 89 da Lei n.º 8.666/93. Veja-se:

O crime do art. 89 da Lei nº 8.666/93 (“Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”) reclama o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de praticar o ilícito penal, que não se faz presente quando o acusado atua com fulcro em parecer da Procuradoria Jurídica no sentido da inexigibilidade da licitação (STF, 1.ª Turma, Inq 3753/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 18.04.2017).

É que se deve distinguir entre o equívoco ou ilícito administrativo e o ilícito penal. Nem sempre a constatação de que o administrador atuou equivocadamente ou mesmo tendo cometido uma ilegalidade do ponto de vista do Direito Administrativo, significa que se está diante de uma figura do Direito Penal.

De ver-se, também, que a própria Constituição Federal, no art. 37, inciso XXI, ao estabelecer a obrigatoriedade da realização de processo licitatório para contratação de obras e serviços pela Administração Pública, se encarregou de prever a possibilidade de exceções, remetendo à lei ordinária (“ressalvados os casos os casos especificados na legislação”).

O legislador constituinte percebeu que, diante de certas circunstâncias específicas, o interesse público dispensaria ou tornaria inexigível a realização de licitação.

E a Lei de Licitações, nos arts. 24 e 25, trata, respectivamente, dos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação.

Outro ponto a ser posto em relevo no exame da caracterização do crime do art. 89 da Lei n.º 8.666/93, diz com a verificação da ocorrência de dano ao erário, com a conduta de dispensar ou inexigir licitação.

Com efeito, como já observado alhures, o art. 3.º, caput, da Lei de Licitações,  estabelece a seleção da proposta mais vantajosa à Administração Pública como um dos princípios reitores do processo licitatório. Portanto, se, não obstante não se tenha realizado o certamente de licitação, ainda assim a contratação não tiver causado qualquer prejuízo aos cofres públicos, tendo em vista a seleção da proposta mais vantajosa ao erário, afastada estará a norma penal incriminadora do art. 89.

Não se pune a conduta omissa em realizar a devida licitação, conquanto censurável. O que se deve punir é a conduta que deixa de realizar licitação, quando devida, para fins de celebração de contrato desvantajoso e prejudicial à Fazenda Pública.

Esse entendimento, inclusive, emerge da própria Lei n.º 8.666/93, a qual, em seu art. 99, caput, reza que “A pena de multa cominada nos arts. 89 a 98 desta Lei consiste no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente” (grifou-se).

Oportuno pontuar, se a própria lei de regência estabelece que a pena de multa, espécie sancionatória do crime do art. 89, deve levar em conta a vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente, é porque a existência de alguma vantagem para o agente constitui pressuposto para a existência do delito em questão.

Trocando em miúdos, inexistindo vantagem à custa do prejuízo do erário, não se há de cogitar do crime previsto no art. 89, caput, da Lei n.º 8.666/93.

Esse raciocínio já foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inquérito n.º 2482, em voto do Ministro Dias Toffoli, quando se decidiu que, para a caracterização do crime previsto no art. 89 da Lei de Licitações, era indispensável a existência de prejuízo aos cofres públicos:

Senhor Presidente, leio o tipo pelo qual está denunciado o acusado:

‘Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.’

Mas vou ao art. 99 da Lei nº 8.666/93, que dispõe:

‘Art. 99. A pena de multa cominada nos arts. 89 a 98 desta Lei consiste no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente.’

Ou seja, a alegação da defesa de que para a configuração do tipo é necessário que se descreva na denúncia a vantagem obtida é decorrência da própria Lei de Licitações, no seu art. 99, estando ausente da denúncia qualquer alegação a respeito da vantagem que teria sido obtida pelo acusado.

Cuida-se, apenas, do caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, o qual não pode ser amesquinhado.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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