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Requisitos e fundamentos para decretação de medidas cautelares no processo penal

Requisitos e fundamentos para decretação de medidas cautelares no processo penal

A doutrina processual penal costuma apontar para o fummus commisi delicti e para o periculum libertatis como pressupostos inarredáveis para decretação de medidas cautelares no processo penal (ou mesmo na fase pré-processual).

Estes pressupostos estão previstos, por exemplo, no art. 312 do CPP, que estabelece a necessidade de “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria” (requisito) ao lado do que seriam os fundamentos legais capazes de dar vazão a decretação da prisão preventiva, como espécie de medida cautelar pessoal no processo penal brasileiro: garantir a ordem pública, a ordem econômica, a conveniência da instrução criminal e/ou assegurar a aplicação da lei penal.

O que interessa a breve reflexão aqui proposta é se haveria necessidade ou relevância em distinguir estes pressupostos entre requisitos e fundamentos. Se a resposta for afirmativa teríamos, de um lado, como requisito comum a ser observado na decretação de todas as cautelares, o fummus commiss delictii.

De outro, os fundamentos específicos de cada espécie de medida, reunidos sob a expressão periculum libertatis. No caso da prisão preventiva, fundamentos são as hipóteses cabíveis, mencionadas no art. 312 do CPP, lido em consonância com o que determinam os arts. 313 e 314 do mesmo diploma legal. Pode ainda ser considerado um fundamento necessário adicional, obrigatório para decretação das cautelares que afetam mais severamente a liberdade do agente, a argumentação de inadequação ou insuficiência das cautelares diversas da prisão, conforme preconizado pelo art. 310, II do CPP.

A relevância desta classificação, como se argumentará a seguir, não se restringe a fins didáticos ou de interesse meramente acadêmico, mas visa fornecer um sustentáculo distinto para afirmação da presença ou ausência de cada um desses pressupostos na decisão judicial concreta.

Isso porque a natureza destes elementos parece exigir diferentes formas de abordagem e é justamente a confusão cotidianamente empregada entre essas formas de análise que resulta em decisões de frágil legitimidade, dentre as quais se destacam (negativamente) aquelas que pecam por crassa redundância (mera repetição do texto legal ou de outros julgados), concretizando um exercício de retórica incapaz de atender aos preceitos constitucionais que exigem que toda judicial seja fundamentada (exigência ainda mais sensível quando se trata do processo penal, onde forma é garantia; onde forma é materialização do princípio basilar da presunção de inocência) (art. 5º, LXI e 93, IX da CF/1988, cc art. 315 CPP).

Assim, a necessidade de distinção entre requisitos e fundamentos para decretação (ou manutenção) das cautelares no processo penal está relacionada com a relevância em se estabelecer critérios diferenciados para apreciação de sua legitimidade.

De um lado, o exame acerca dos requisitos exige uma fundamentação primordialmente descritiva, ou seja, o exercício de uma correlação argumentativa entre os fatos (provas) apresentados e o tratamento jurídico dado a estes.

Neste sentido, a análise dos requisitos pauta-se com maior ênfase no lastro probatório, na valoração jurídica do que foi produzido, em termos de investigação, até o momento da decisão acerca da decretação ou não da medida cautelar.

Em síntese, a fundamentação voltada para afirmação ou negação da presença dos requisitos pauta-se num juízo de correlação entre dados empíricos e a qualidade (valor probatório) destes dados para servirem como prognose de probabilidade positiva[1] acerca do cometimento de uma conduta delitiva.

No caso dos fundamentos (periculum libertatis), seu conteúdo específico é definido por elementos mais porosos, menos suscetíveis de apreciação meramente sensorial[2]. Diferencia-se este exame do que se opera no caso dos requisitos pelo fato de que a modalidade de fundamentação aqui requerida é prioritariamente de conteúdo jurídico-argumentativo, destinada ao convencimento, muito mais do que a “simples” demonstração.

O que se quer deixar claro com esta afirmação é a responsabilidade do magistrado em construir uma argumentação capaz de elucidar, da forma mais clara possível, aquilo em que está calcada a sua percepção acerca da existência concreta do fundamento aventado.

Com isso afasta-se por completo a possibilidade de que o magistrado simplesmente aponte a “categoria” a que o fundamento pertence, alegando, por exemplo, que “está presente o requisito da necessidade de garantia da ordem pública”, sem que se empenhe em demonstrar, fazendo uso de técnica argumentativa clara e cabal, os aspectos que o levaram a essa conclusão.

Medidas cautelares

Enquanto que lá na análise dos requisitos a qualidade do relatório da investigação policial ou mesmo da explanação acusatória do titular da ação penal podem ter tornado o exercício da análise dos requisitos algo substancialmente simples (mas não simplório), aqui, mesmo o melhor dos textos em matéria de solicitação da decretação da medida cautelar (que, por sinal, deve ser considerada obrigatória, abandonando-se o ranço inquisitório das decretações de medidas cautelares de ofício) não autoriza uma mera repetição[3] pelo magistrado, que precisa cumprir com o ofício de fundamentar a decretação de forma robusta, exercendo sua capacidade de convencimento da melhor forma possível.

Naturalmente o que se arguiu acima não significa nem que a análise dos requisitos deva receber menor cuidado na fundamentação, nem que haja uma diferença ontológica entre juízos demonstrativos e juízos argumentativos. Sabe-se que entre estes há não uma relação excludente, mas sim uma relação complementar.

O que se defende, porém, é que a partir da distinção, ainda que tênue, entre as formas de fundamentação, imponha-se um dever de argumentação de maior calibre sobre a análise dos fundamentos para decretação das medidas cautelares, afastando a possibilidade de simplesmente se apontarem para dados trazidos pela investigação ou pelo conteúdo do pedido de decretação da medida, sem que o magistrado se desincumba deste ônus argumentativo, exigido constitucionalmente.

Como conclusão, parece haver relevância em se diferenciar os requisitos dos fundamentos da decisão que decreta a imposição (ou manutenção) de quaisquer das medidas cautelares no processo penal, em especial aqueles que resultam em séria constrição da liberdade do sujeito que ocupa o polo passivo no processo penal.

Uma vez que os requisitos obedecem a uma lógica primordialmente demonstrativa e os fundamentos precisam se submeter a um juízo enfaticamente valorativo/argumentativo, sua análise sob um único prisma de exigência (técnica) enfraquece a capacidade que ambos possuem em servir de constrição ao uso abusivo das medidas cautelares no processo penal.

Isso não significa que as características apontadas sejam estanques ou hermeticamente verificáveis em apenas cada um dos pressupostos, mas que a presença prevalecente de formas diferentes de apreciação faz surgir a necessidade de formas diferentes de enfrentamento de cada um destes.


NOTAS

[1] Esta prognose incide sobre a probabilidade de afirmação definitiva da hipótese acusatória. (LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 95).

[2] É possível fornecer, como definição genérica do que significa o periculum libertatis, a afirmação de que se consubstancia no perigo pelo estado de liberdade do sujeito indiciado ou processado criminalmente, mas isso é o mesmo que não dizer nada em termos de esclarecimento dos fundamentos específicos através dos quais este perigo é averiguado concretamente, diante dos quais se torna cabível a constrição legítima da liberdade antes do trânsito em julgado de ação penal condenatória.

[3] Em entendimento contrário: NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 817 (nota nº 30).


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Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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