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Qual crime comete a garota de programa que subtrai os bens do cliente?

E se uma garota de programa subtrai os bens do cliente após o serviço? Qual o crime?

Calma, com essa coluna não pretendo suscitar nenhum debate sobre a lisura e honestidade das garotas de programa (que, sim, devem ser respeitadas sempre, vez que honestas e trabalhadoras!), tampouco quero justificar uma conduta de subtração de bens após a execução dos serviços sexuais, como também não pretendo fingir que algo não está acontecendo, que não existe, como é o caso da exploração sexual e econômica de inúmeras mulheres que buscam o seu sustento da forma, talvez, mais sofrida que se possa imaginar.

Não sejamos, pois, ingênuos. O comércio sexual é uma realidade e, com isso, inúmeros problemas jurídicos emergem, um deles está justamente na conduta de subtração de bens do cliente por parte da profissional.

Imagine o caso: um rapaz, percorrendo uma avenida movimentada de uma grande cidade brasileira (pode ser São Paulo, Curitiba, Porto Alegre etc.) encontra uma garota de programa e, ato contínuo, estaciona seu carro. Após as apresentações, pactuam um preço pelo serviço (também conhecido como “michê” ou “programa”) e o “local da prestação”, que é um motel.

Prestado o serviço, o cliente, de maneira livre e consciente, recusa o pagamento da quantia pactuada e se aproveita da situação para dar uma “rasteira” na moça, um “calote”.

Porém, a garota de programa, indignada com o abuso, observa que o cliente deixou um pingente de ouro sobre a cômoda da cama e, num movimento rápido, o subtrai, passando, em seguida, a ameaçar o então cliente “caloteiro” com uma faca que levava na bolsa para que honre seu débito.

A que tipo essa conduta estaria adequada?

Assim como muitos de vocês, também aprendi durante a faculdade que a conduta descrita acima se amoldaria, perfeitamente, naquela prevista no artigo 157, § 1º, do CP, que descreve o caso em que o agente, após subtraída a res furtiva (a “coisa furtada”, em bom português), emprega a grave ameaça ou violência como mecanismo para assegurar o produto do crime e sua posse (roubo impróprio).

A propósito, essa conduta é usada por muitos professores de direito penal da “velha guarda” como exemplo do crime. Mas, convenhamos, não se mostra adequado, em pleno século XXI, que a situação como posta ainda seja vista dessa maneira, tão antiquada e conservadora.

E por que digo isso?

Porque militar no sentido de punir a prostituta pelo crime de roubo é desconsiderá-la como profissional que é, como mulher sofredora e que, assim como muitas outras, está em busca de seu sustento. Enfim, o que não se pode perder de vista é que profissionais do sexo são merecedores de proteção jurídica sim, não se pode mais argumentar que os tais “bons costumes” vedariam qualquer tipo de demanda judicial em prol de prostitutas – até porque a moral não tem o condão de “corrigir” ou “legitimar” o direito. O que decidiria essa questão seria a própria noção de dignidade humana.

A dignidade da pessoa humana, como bem insculpida no seio da Constituição da República (art. 1º, inc. III), veda que a pessoa, o ser humano, seja visto como um instrumento para algo, pois sempre deve ser um fim em si mesmo.

[…] por isso, ela deve ser vista como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo instante crepita, renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que, afinal, embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência […] (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 214).

Destarte, uma garota de programa é um ser humano dotado de dignidade e, por isso, jamais pode ser vista como mero instrumento de satisfação da concupiscência alheia, como mero mecanismo de alívio dos desejos mais sórdidos dos homens. Não. O seu produto, o seu serviço, é lícito e assim deve ser tratado.

A garota de programa exerce atividade tão lícita quanto a de um chaveiro, carteiro, zelador, dentista, médico, advogado, juiz ou promotor, não obstante muitos a enxerguem como uma violadora da moral coletiva – uma tremenda besteira numa sociedade de hipócritas como é a nossa.

Qualquer pretensão de cobrança de dívidas por serviços sexuais, então, deve ser vista como uma pretensão legítima e agasalhada pela ordem jurídica – inclusive, a própria cobrança judicial do “michê” seria perfeitamente cabível. Assim, se legítima é a pretensão, não se pode falar em roubo no caso aqui narrado, mas num caso em que o agente faz “a justiça com as próprias mãos” a fim de satisfazer direto legítimo seu.

O caso, como já se adiantou, é de verdadeiro exercício arbitrário das próprias razões, conforme estampado no artigo 345 do Código Penal, concretizando-se com o ato de “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”.

A subtração, desta feita, seria um crime? Sim, seria, porém não seria um delito de roubo, pois não se está aqui subtraindo coisa alheia para si, mas satisfazendo uma pretensão, um direito assegurado em lei, por meio da autotutela.

É o mesmo caso de um açougueiro que resolve subtrair a motocicleta do cliente em razão da conta “pendurada”, do “fiado”. Se ele o desejasse, poderia perfeitamente ter “batido nas portas do judiciário” para buscar a proteção adequada e suplantar a violação de seu direito, ingressando com a ação cível cabível – uma ação ordinária ou de execução, por exemplo. E o mesmo se aplica, na íntegra, ao caso de serviços sexuais.

O judiciário não pode se furtar ao julgamento da lide envolvendo a prostituta por mero reclame moral. O que move o direito é a própria norma jurídica e seus limites semânticos, que, nesse caso, estão completamente ao lado das garotas de programa.


REFERÊNCIAS

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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