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La Casa de Papel e o Direito Penal do Inimigo

La Casa de Papel e o Direito Penal do Inimigo

No dia 3 de abril de 2020, estreou na plataforma de streaming Netflix a quarta parte da série La Casa de Papel, fenômeno internacional que ganhou uma quantidade incrível de fãs nos últimos anos.

Conhecida pela sua simbologia, a trama resgata a cantiga “Bella Ciao” – utilizada pelos partisans italianos que lutavam contra o fascismo que assolava o país no século passado –, de modo que em diversos lugares do mundo a canção, em conexão direta com a proposta geral do seriado, é utilizada como maneira de expressar resistência contra o poder, tendo também forte ressonância com a luta individual que qualquer pessoa possa estar enfrentando. Soma-se a isto a característica vestimenta, composta por um macacão vermelho e a máscara de Salvador Dalí (pintor espanhol, conhecido pelo seu trabalho surrealista – 1904-1989).

A história gira em torno do “Professor” (Alvaro Morte), que possui um plano mirabolante e riquíssimo em detalhes para assaltar a Casa da Moeda da Espanha (1ª temporada – partes 1 e 2) – e posteriormente o Banco da Espanha (2ª temporada – partes 3 e 4). Para isso, conta com um grupo de indivíduos que possuem habilidades necessárias para o sucesso das empreitadas. Cada qual recebe o nome de uma cidade do mundo, para evitar ao máximo a criação de vínculos entre os membros e manter um patamar “profissional” dentro do projeto.

Pois bem, o que interessa analisar neste momento é a forma com a qual o Estado e seus representantes (especialmente agentes policiais e a promotoria) atuam frente ao audacioso grupo. Em inúmeros momentos são mostradas ações ilegais praticadas por aqueles que possuem o dever de resguardar a lei. Os interesses pessoais, as recompensas, o engajamento dos jogadores, fair play e doping processual, enfim, todos os fatores explicados prodigiosamente por Alexandre Morais da ROSA (2019; 2018) são muito bem desenhados e identificados na trama.

Com o desenrolar do enredo, os integrantes do grupo liderado pelo Professor passam a serem vistos não mais como sujeitos portadores de direitos – como seres humanos –, mas sim como uma ameaça que deve ser neutralizada de qualquer maneira. Custe o que custar. E é aí que entra a teoria do Direito Penal do Inimigo, idealizada pelo catedrático alemão Günther Jakobs:

Segundo Jakobs o Direito Penal do Inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas. (JAKOBS, 2012, p.39).

Etiquetados pelo governo como inimigos públicos, não se poupa esforços para capturar os membros do bando. Um acontecimento que exprime muito bem essa conexão com a teoria do Direito Penal do Inimigo se deu no momento em que o governo espanhol capturou Rio (Miguel Herrán) e o manteve sob cárcere privado e constante tortura por mais de dois meses em um deserto da Argélia.

De acordo com a teoria do Direito Penal do Inimigo, atos preparatórios já seriam passíveis de resposta penal, uma vez que se lida não com pessoas mas sim com ameaças personificadas. Na referida teoria, a personalidade é algo que deve ser confirmada mediante a conduta de obediência às normas legais – no momento em que a expectativa comportamental não é alcançada, se perde a condição de cidadão e então se pode falar em “heteroadministração”: medidas de segurança (não pena) para aniquilar o perigo iminente (pessoas taxadas como “não-pessoas”).

Ao revisarmos o exercício real do poder punitivo, verificamos que este sempre reconheceu um hostis, em relação ao qual operou de modo diferenciado, com tratamento discriminatório, neutralizante e eliminatório, a partir da negação da sua condição de pessoa, ou seja, considerando-o basicamente em função de sua condição de coisa ou ente perigoso.

Por seu turno, um rápido exame da doutrina jurídico-penal, isto é, do discurso do saber jurídico e também da pretensa ciência empírica que o alimentou, demonstra que esta se ocupou em legitimar amplamente a já assinalada discriminação operativa. No geral, essa maneira de agir pretendia basear-se em uma individualização supostamente ôntica de certas pessoas como inimigos, sob a forma de uma imposição do fato ao direito, em função da necessidade criada pela emergência de plantão invocada. (ZAFFARONI, 2007, p.115.)

Portanto, por mais que seja possível perceber traços do Direito Penal do Inimigo no cotidiano, não se pode, sob qualquer hipótese, tolerar (nem de forma parcial) este modelo dentro de um Estado de Direito. Há uma incompatibilidade funcional gritante entre os postulados, sendo impossível relativizar o valor humano e tratar pessoas como meras ameaças que necessitam ser exterminadas.

O aumento do aparato coercivo do Estado – que, por meio de seus representantes, seria aquele com a incumbência de decidir de maneira arbitrária e discricionária quem é inimigo e quem não é – não se apresenta como uma forma válida, tampouco eficaz no que diz respeito ao combate à criminalidade. A sociedade como um todo sofreria as consequências do Direito Penal do Inimigo, uma vez que todos – sem exceção – seriam inimigos em potencial.


REFERÊNCIAS

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 5.ed. revista, atualizada e ampliada. Florianópolis: EMais, 2019

______. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. 3.ed. Florianópolis: Empório Modara, 2018.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2.ed. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


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