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Princípio da paridade de armas e a disposição cênica do Tribunal do Júri

Princípio da paridade de armas e a disposição cênica do Tribunal do Júri (Por Carlos Bermudes e Quézia Netto Carneiro)

O exercício da advocacia criminal é repleto de desafios que extrapolam o conhecimento técnico e a higidez da postura profissional, pois cotidianamente nos deparamos com práticas das quais devido a sua habitualidade e concordância pacífica pela maioria dos operadores de direito, nos leva a esquivar do encargo de reflexão critica sobre suas origens e significações; apenas continuamos a repeti-las dia após dia, ao longo dos anos.

O Direito, marcado fortemente pela simbologia de demonstração de exercício de poder, não se isenta da reprodução de práticas ritualísticas, com a repetição e consequente perpetuação de procedimentos e regras nem sempre são compatíveis com o atual modelo republicano; daí, portanto, decorre a necessidade de uma ponderação da harmonia dessas práticas com os princípios constitucionais.

No que se refere a matéria penal, a composição geográfica (estrutura cênica) ocupada pelos atores processuais nas salas de sessões de Juri, em que o órgão ministerial acusador ocupa posição privilegiada em detrimento da defesa, é um exemplo de prática reiterada que não encontra respaldo. 

Sem que quase ninguém se questione, sem que quase ninguém se pergunte, cotidianamente se repetem, da mais longínqua comarca ao Supremo Tribunal Federal, audiências e sessões em que o Ministério Público, órgão acusador no processo penal, diferenciadamente se coloca fisicamente junto ao órgão julgador, em inaceitável posição insinuadora de uma suposta imparcialidade e/ou superioridade (KARAM, Maria Lúcia: CASARA, Rubens R. R. Redefinição Cênica das salas de audiências e de sessões dos tribunais. In. Revista de Estudos Criminais, n. 19. Porto Alegre: Instituto Interdisciplinar de Estudos Criminais, jul./set. 2005).

Com o advento da Constituição de 1988 e a consequente ruptura do sistema inquisitivo, mudaram-se os valores e princípios norteadores do Processo Penal, passando a adotar no Brasil o sistema acusatório; sistema idôneo na efetiva busca pela Justiça, primando pelo resguardo dos direitos e garantias individuais do acusado (agora não mais visto como objeto do processo), pela garantia do exercício do direito de defesa e a igualdade de tratamento com relação à acusação, durante toda a duração do processo, possibilidade decorrente do princípio da Paridade das Armas.

Outro ponto de fundamental relevância é a separação das funções de julgamento, defesa e acusação, que diferentemente do que ocorria no sistema inquisitivo, agora não se confundem mais na figura de uma única pessoa; cada ator processual agora possui seu campo de atuação delimitado.

Princípio da paridade de armas

Contudo, em flagrante oposição ao princípio da Paridade das Armas, característico do sistema acusatório, donde se infere o entendimento de que não poderá haver discriminações (negativas ou positivas) no trato dos atores processuais, conferindo-lhes tratamento isonômico para o exercício de suas funções na relação processual, é relevante a crítica quanto a disposição cênica da sala de audiência.

De certo que a disposição cênica nas audiências criminais processadas pelo rito comum (ordinário, sumário e sumaríssimo) também merece crítica. No entanto, é no procedimento especial do júri que efetivamente poderão ocorrer efeitos deletérios à defesa do acusado, uma vez que aqui os juízes naturais da causa são pessoas leigas, sujeitas, portanto, a influência de questões estranhas ao caso criminal.

Assim, tanto nas audiências realizadas perante um juiz togado no âmbito dos espaços judiciários, bem como naquelas do Tribunal de Júri,  a composição geográfica da estrutura, onde ha prerrogativa de assento do membro do Parquet, enraizado ao lado direito do Juiz, se mostra conduta manifestamente contrária aos princípios processuais penais.

A crítica a cerca dessa prerrogativa num primeiro momento, pode parecer desnecessária e sem relevância prática, no entanto, para aqueles que sofrem com a estigmatização de estarem no banco dos réus, a reprodução desse privilégio do assento pode acarretar prejuízos. Ademais, não seria essa proximidade do Ministério Publico, um resquício do sistema inquisitorial?

Ora, se o argumento contrário é fundamentado na lógica de que a composição cênica das sessões não tem poder para influir no resultado do julgamento, então que prejuízos poderiam ocorrer da reestruturação (ruptura) desse cenário num sentido de uma transformação isonômica e com uma efetiva redemocratização do espaço?

Não se pode desprezar todo o peso da simbologia por trás dessa postura que reforça a ideia entranhada no imaginário popular de que o réu no caso penal é o inimigo do povo, evidenciando que sua estigmatização começa antes mesmo da efetiva condenação por meio da sentença.

Portanto, para prevalecer a isonomia processual e materializar a imparcialidade do julgador (ao juiz não basta ser imparcial, deve parecer ser imparcial), fundamental repensarmos tal estrutura. Nesse sentido:

Nesta esteira, quando falamos em processo justo falamos em processo igualitário, de sorte que o processo deve contar necessariamente com um juiz independente, imparcial, equidistante, que dará às partes as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento. NICOLITT, André. Manual de processo penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.33

O Tribunal do Juri é evidentemente o que sofre maior impacto da disposição mobiliária e sua intrínseca simbologia, uma vez que a decisão está sob o domínio de jurados leigos, que podem (e com certeza são) influenciados senão de forma consciente, ao menos de modo inconsciente a uma má interpretação da qualificação da defesa.

Afinal, não existem razões para que a defesa fique em plano inferior à acusação, haja vista que não há hierarquia entre essas, a postura mais adequada, é que ficassem no mesmo plano, sem distinções de qualquer natureza, pois quando tratamos de direito de tamanha relevância, que é a liberdade do individuo, qualquer fator que possa trazer prejuízos ao seu julgamento deve ser observado e se for o caso abolido.

Princípio da paridade de armas e tribunal do júri

Assim sendo, não é forçoso afirmar que o lugar de destaque ao membro do órgão ministerial é prática manifestamente contrária ao principio da Paridade de Armas.

Esta estrutura cênica, manifestamente inadequada ao modelo republicano e aos princípios garantidores expressos nas declarações universais de direitos e na Constituição Federal brasileira, nitidamente revela a estrutura patriarcal e a ideologia de casta, que, entranhadas na autoritária história do Estado brasileiro, favorecem os surgimentos de violências simbólicas e tratamentos privilegiados, que acabam por não ser sentidos, nem percebidos como tal. CASARA, Rubens R.R; KARAM, Maria Lucia. Redefinição Cênica das Salas de Audiência e de Sessões nos Tribunais. Revista de Estudos Criminais, nº19. p.124, 2005.

Desse modo, quaisquer que sejam as vantagens, por menores que sejam estas, mas que prejudiquem a simétrica paridade das partes, deve ser expurgada do processo penal.

Ainda nesse contexto, é inegável que a manutenção do tratamento privilegiado à acusação revela a perpetuação uma ideologia de castas ainda entranhada em nossa sociedade, se fazendo altamente necessário que esse debate continue vivo, e que, sobretudo, seja visto não como debate meramente vaidoso, mas como uma efetiva busca a integridade do sistema acusatório, evitando a contaminação do julgador, e assegurando a imparcialidade que a sociedade como um todo, espera da prestação jurisdicional.


REFERÊNCIAS

A Compreensão Cênica da Audiência de Instrução e Julgamento Criminal no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 27/02/2019.

BOUDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989.

KARAM, Maria Lúcia: CASARA, Rubens R. R. Redefinição Cênica das salas de audiências e de sessões dos tribunais. In. Revista de Estudos Criminais, n. 19. Porto Alegre: Instituto Interdisciplinar de Estudos Criminais, Jul./Set. 2005.

KARAM, Maria Lucia; CASARA, Rubens R.R. Processo Penal do Espetáculo: Um Banquinho, O Ministério Público e a Constituição: Em busca de um espaço público republicano. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito Editadora, 2015.

NICOLITT, André. Manual de processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

ROSA, Karine Azevedo Egypto. A inconstitucionalidade da disposição cênica das salas de audiências e tribunais brasileiros: incons. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 13, no 1457. Disponível aqui.


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