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O STF e a constitucionalidade dos sacrifícios de animais em cultos de religiões de matriz africana

O STF e a constitucionalidade dos sacrifícios de animais em cultos de religiões de matriz africana

Na semana que passou foi extremamente comentada a decisão do Supremo Tribunal Federal que, em sessão ocorrida no dia 28 de março, finalizou o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 494.601 e decidiu pela constitucionalidade da lei do estado do Rio Grande do Sul que permite a utilização de animais em cultos de religiões de matriz africana. “Os ministros analisaram o tema através de uma lei estadual do Rio Grande do Sul que deixou expresso que é possível o sacrifício animal nessas situações.” (PUPO, 2019).

Para entender a questão, é necessário retroceder no tempo: o caso chegou ao Supremo através de um recurso do Ministério Público gaúcho contra uma decisão do judiciário local que deliberou que o sacrifício dos animais não viola o Código Estadual de Proteção aos Animais. “A norma local definiu que os rituais de sacrifício nas religiões africanas não são inconstitucionais, ‘desde que sem excessos ou crueldade’.” (STF CONFIRMA… 2019).

O julgamento começou no ano passado, mas estava suspenso “devido a um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes”. (PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA, 2019). Foi, então, finalizado na tarde do dia 28 de março de 2019. Ao apresentar voto-vista na sessão, “o ministro Alexandre de Moraes votou no sentido de dar ao artigo estadual interpretação conforme a Constituição e afirmou que a sacralização é parte essencial dos cultos afro-brasileiros. ‘São rituais que não figuram maus tratos aos animais e não há como restringir por causa da liberdade religiosa. Não há prática com emprego de maldade e maus tratos’, disse.”  (COELHO, 2019).

Durante o julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso “entendeu que a lei local deu proteção especial às religiões de matriz africana em razão do histórico de discriminação. ‘A liberdade religiosa é um direito fundamental das pessoas, é um direito que está associado às escolhas mais essenciais e mais íntimas que uma pessoa pode fazer na vida’, disse.”’ (STF CONFIRMA… 2019).

Na conclusão, os ministros entenderam que a crueldade contra os animais não faz parte do ritual de culto das religiões de origem africana. Além disso, a Constituição garante a liberdade de culto religioso a todos os cidadãos. (STF CONFIRMA… 2019).

Votaram a questão os ministros Marco Aurélio, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Cármen Lúcia e o presidente, Dias Toffoli.

A decisão foi tomada em um recurso com repercussão geral e deverá ser aplicada por todos os tribunais e juízes do país em casos semelhantes. (BARBIÉRI; OLIVEIRA, 2019).

Por outro lado, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA) – a maior rede de proteção animal do Brasil, que conta com mais de 100 ONGs afiliadas –, sustentou que “nenhum dogma pode se legitimar pela crueldade.” (PONT, 2019).

A AVAAZ.org assim se posiciona em relação à legalização do sacrifício de animais em cultos religiosos:

a liberdade de crença não pode se sobrepor ao direito dos animais. Trata-se de ato de selvageria, covarde e de crueldade contra incapaz. (AVAAZ, [2019?]).

Comentários do membros da Comissão de Estudos

Por sua vez, a II Comissão de Estudos em Direito Animal do Canal Ciências Criminais – edição 2019 –, formada por um grupo de pesquisadores sobre a causa animal, também abordou essa decisão do STF. Seus membros assim se pronunciaram:

“Uma grande derrota para a proteção e o bem-estar animal aconteceu hoje [28 de março]. A laicidade do Estado não significa falta de ponderação de princípios, mas a legislação brasileira insiste em reconhecer o direito à vida apenas ao animal humano; ao não humano fica o interesse ambiental ou, agora, religioso.” (Bruno N. Duque da Silva, Advogado, Especialista em Direito Público e Direito Penal).


 “Por primeiro, é necessário ponderar valores e princípios para ampliar a ideia do limite da liberdade humana em relação ao outro e ao meio ambiente, vez que a sociedade ainda apresenta aspectos especistas e antropocêntricos. Além disso, submeter um animal senciente à dor é uma questão moral ainda negligenciada ou interpretada de forma equivocada ou superficial. Sendo assim, é indispensável politizar a questão animal para garantir a construção de mecanismos didáticos e menos dogmáticos que possam auxiliar na modificação da cultura e propor, inclusive, meios alternativos para preservar a conexão entre o humano e o divino, como uma oportunidade de aprofundar a ‘humanidade’ e empatia, bem como o reconhecimento da vida animal não apenas para a pacificação social, mas, sobretudo, para o bem-estar de todos.” (Monalyse A. Novinski, Advogada, Bacharela em Psicologia pela PUCPR).


“A decisão do STF, reconhecendo a constitucionalidade do sacrifício de animais em rituais religiosos, vai de encontro à ética ambiental que impera nesta atual sociedade e ordenamento Jurídico pátrio, após a implementação do Estado Socioambiental Brasileiro, que possuem os limites éticos muito bem delimitados no sentido da consideração moral dos seres vivos. O mesmo já não se pode dizer quanto aos novos limites jurídicos do Supremo, ressurgidos por esta decisão ao permitir que seres vivos sencientes sejam submetidos a tratamento degradante e ao crime de maus-tratos, ou seja, uma excludente de ilicitude fora do estado de necessidade permitido neste tipo de crime.” (Carla F. de Araújo, Advogada, Diretora de Regularização Ambiental em Diamantina-MG).


“A liberdade religiosa está sujeita a limitações contidas na própria lei. No que tange ao uso de animais vivos, tais limitações deveriam se basear no artigo 225 da Constituição, que veda a sujeição de animais a crueldade, intrínseca ao sacrifício religioso. infelizmente, os guardiões da Constituição escolheram desprezar uma previsão constitucional que tem como objetivo evitar o sofrimento animal, confirmando a legalidade de uma prática tão cruel quanto o sacrifício religioso animal.” (Dafne de S. Nogueira, Graduada em Direito, Mestranda em Direito Animal e Sociedade em Barcelona-Espanha).


“As práticas culturais e religiosas existem, todavia, leis que promovam tais práticas que impliquem no sofrimento dos animais devem ser combatidas. A recente decisão do STF que considera constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos vai na contramão de uma tendência mundial que vem sendo adotada por diversos países em considerar o animal como ser senciente, cuja vida é digna de proteção legal. Incluir o animal, que não tem liberdade de escolha, em atos de sacrifício, ainda que amparado pelo viés religioso, é uma crueldade. (Yasmin M. Pinheiro, Bacharela em Direito, Mestra em Direitos Humanos e Direito Internacional).


“O choque entre direitos fundamentais deve ser resolvido sempre com a aplicação do princípio da ponderação. Quando direitos dessa natureza entram em colisão, são denominados ‘hard cases’ e os Tribunais, dentre eles o STF, levam muito tempo para decidirem diante de casos concretos. A vida, a dignidade, a saúde, a liberdade e outros direitos animais estão cada vez mais em alta e parte da sociedade parece começar a se atentar para tais ‘novos valores’. Dessa forma, a recente decisão da predominância da liberdade religiosa sobre a vida animal e a possibilidade  do sacrifício (utilização) desses seres em rituais religiosos é um retrocesso jurídico social, pois acaba se carimbando, nestes, um status de ‘coisa’ que tanto se tenta desvincular.” (Caroline dos P. Veloso, Advogada, Mestra em Planejamento Ambiental pela Universidade Católica de Salvador- UCSAL.).


“O Supremo Tribunal Federal – STF, em consolidado entendimento, limitava o exercício de direitos culturais quando para sua fruição havia a submissão de animais à crueldade (por exemplo, nos julgamentos versando sobre a rinha de galo, a farra do boi e a vaquejada). Estava estabelecido um patamar ético em relação aos animais. Nesse contexto, e especialmente porque a Corte Constitucional brasileira, no julgamento da questão da vaquejada, reconheceu explicitamente que os animais são seres sencientes, causou surpresa a declaração de constitucionalidade de lei gaúcha que permite o sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana. Esperava-se que ocorresse, cada vez mais, uma ampliação da proteção e do respeito aos animais, uma expansão dos Direitos Animais.” (Arthur H. P. Regis, Bacharel em Ciência Biológicas pela UFPB, Bacharel em Direito pela UFPB/UniCEUB, Mestre e Doutor em Bioética pela UnB).


“A recente decisão do STF sobre o uso de animais em rituais religiosos sepulta em definitivo a ética há muito adoecida naquela Corte, posto que os ministros favoráveis seguem obsoletos na defesa das tradições retrógradas onde permitiram que ideologias imateriais e limitativas tivessem maior valor, sobrepondo-se ao próprio direito à vida, consagrado no artigo 225 da Constituição Federal.” (Geórgia Racca, Advogada, Pós-graduada em Direito Médico e da Saúde. Bioética e Biodireito).


“Há uma questão jurídica que vem sendo levantada por parte dos constitucionalistas que me parece ser o grande equívoco dessa decisão do STF. A vedação à crueldade animal que está prevista na Constituição Federal tem natureza de regra constitucional. É similar, por exemplo, à vedação de tortura a humanos, também regra constitucional. Logo, por ser regra, não há que se fazer ponderação de princípios colidentes  (liberdade religiosa x proteção do ambiente/fauna). Regra exige aplicação e seu papel é o de limitar o âmbito de liberdade de outros direitos fundamentais que colidam com a regra. Logo, nessa ótica, que pra mim é a mais correta, nosso ordenamento jurídico assegura a liberdade religiosa e de cultos, desde que não acarrete crueldade animal. E obviamente que há crueldade nos sacrifícios religiosos. Logo, há vedação de regra constitucional expressa.” (Rogério S. Rammê, Advogado, Doutor em Direito Público pela PUCRS. Mestre em Direito Ambiental pela UCS.)


“A questão em pauta do RE 494601 era sobre isonomia e Estado Laico, questionando se UNICAMENTE as religiões de matriz africana poderiam realizar sacrifício de animais. Mas o STF em sua decisão resolveu legislar, respondeu o que não foi perguntado e ainda apresentou argumentações rasas, falaciosas, desprovidas de embasamento técnico, resultando em uma decisão que defende rituais de sacrifício e mantém a exclusividade para as religiões de matriz africana. Independentemente dos ‘achismos’ do STF, não vai ser admitido que um ato claramente cruel é válido (por motivo da religião, crença ou costume que for) que o ato em si deixa deixará de ser cruel. Quem gostaria de ter uma morte lenta e dolorosa? É cruel causar morte lenta e dolorosa? Morrer sangrando (pela crença de outrem) deixa de ser doloroso por motivo religioso?” (Aleska de V. Domingues, Advogada, pesquisadora voluntária no Grupo de Pesquisa em Direito dos Animais da UFSM, Mestranda em Filosofia – PUCRS)


REFERÊNCIAS

AVAAZ. Contra a legalização de sacrifícios animais em rituais religiosos. [2019?]. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.

BARBIÉRI, Luiz Felipe; OLIVEIRA, Mariana. STF decide que sacrifício de animais em cultos religiosos é constitucional. 28 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.

COELHO, Gabriela. Lei estadual que permite o sacrifício de animais em religiões é constitucional. 28 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.

PONT, Ricardo. STF valida sacrifício de animais em cultos religiosos no país. 28 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.

PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Secretaria de Comunicação Social. STF decide que é constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana. 28 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.

PUPO, Amanda. STF decide que sacrifício de animais em cultos religiosos é constitucional. 29 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.

STF confirma validade do sacrifício de animais em cultos religiosos. 28 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 31 mar. 2019.


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Gisele Kronhardt Scheffer

Mestre em Direito Animal. Especialista em Farmacologia. Médica Veterinária.

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