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Coculpabilidade: o reconhecimento do estado de miserabilidade como atenuante genérica

Coculpabilidade: o reconhecimento do estado de miserabilidade como atenuante genérica

No estudo da teoria do delito, um dos pontos mais relevantes é quanto ao conceito de culpabilidade, que, de uma forma geral, é mais ou menos compreendido por grande parte da doutrina como

[…] a reprovação pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita em determinadas circunstâncias em que se podia atuar conforme as exigências do ordenamento jurídico. (PRADO, 2014, p. 455).

Quanto ao conceito normativo de culpabilidade, desenvolvido pelo finalismo de Welzel, que engloba a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa e constitui elementar do tipo penal, há nos setores da doutrina crítica grande resistência quanto à ideia de liberdade de escolha como um dos fundamentos da culpabilidade, tendo em vista que

[…] o próprio sistema punitivo é um produtor de criminalidade e um forte elemento condicionante da possibilidade sociológica de obediência ou não das regras de convivência jurídico-penalmente impostas. (BUSATO, 2011, p. 46).

Assim, tem-se que a crítica doutrinária sugere a superação da ideia de livre arbítrio pleno, ante a impossibilidade de demonstração empírica de que o sujeito poderia ter agido de outro modo; o que, por sua vez, impossibilitaria uma reprovação baseada na liberdade de escolha, já que esta liberdade ou não existe, ou é apenas relativa.

No estudo da culpabilidade encontra-se em Zaffaroni o desenvolvimento do Princípio da Coculpabilidade, propondo, a partir do reconhecimento de falhas estatais na oferta de direitos básicos aos cidadãos e da existência de graves mazelas e desigualdades sociais provocadas pela omissão estatal, partilhar a responsabilidade do indivíduo com o Estado e sociedade, de modo a diminuir ou até mesmo afastar a culpabilidade do agente.

Nesse sentido, extrai-se dos ensinamentos do referido autor que a finalidade de sua teoria é a redução da responsabilidade do agente criminoso em face das causas sociais que tolhem dos indivíduos a livre motivação e, portanto, coloca em xeque a tese de livre arbítrio defendida pelo finalismo de Welzel. Nesse sentido:

Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de determinação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de co-culpabilidade é uma idéia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a co-culpabilidade é herdeira do pensamento de Marat (ver n. 118) e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do art. 66 (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2011, p. 525)

Quanto à responsabilização penal e o momento de individualização da pena, a culpabilidade apresenta-se como elemento essencial, posto que é justamente nesse processo que a reprovabilidade da conduta do agente será mensurada para determinar o quantum aplicável dentro dos marcos temporais mínimos e máximos.

Encontra-se no art. 65 do Código Penal a descrição das circunstâncias gerais atenuantes da pena, e no art. 66 do mesmo diploma a possibilidade de atenuação da pena em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, mesmo que não prevista expressamente em lei, como, por exemplo, a hipótese miserabilidade do indivíduo, onde as circunstâncias do caso concreto evidenciarem que a particular situação de penúria interferiu significativamente para o cometimento do ilícito.

Na mesma esteira de raciocínio, Aníbal Bueno e Salo de Carvalho asseveram:

A precária situação econômica do imputado deve ser priorizada como circunstância atenuante obrigatória no momento da cominação da pena. Apesar de não estar prevista no rol de circunstâncias atenuantes do art. 65 do Código Penal brasileiro, a norma do art. 66 possibilita a recepção do princípio da co-culpabilidade, pois demonstra o caráter não taxativo das causas de atenuação. O Código Penal, ao permitir a diminuição da pena em razão de “circunstância relevante” anterior ou posterior ao crime, embora não prevista em lei, já fornece um mecanismo para a implementação deste instrumento de igualização e justiça social. (CARVALHO; CARVALHO, 2008, P. 74)

Oportuno destacar que para o reconhecimento dos fatores sociais justificantes para aplicação da teoria da coculpabilidade, é possível a adoção da regra prevista no §1º do art. 187 do Código de Processo Penal, que determina que na primeira parte do interrogatório deverá ser perguntado ao agente sobre sua residência, meios de vida, profissão, oportunidades sociais, dentre outros quesitos, de modo que o julgador possa contar com informações e elementos aptos a embasar a valoração da culpabilidade à luz da teoria da coculpabilidade.

Desse modo, vê-se que, em que pese a inexistência de previsão expressa da teoria da coculpabilidade em nosso ordenamento jurídico, a adoção de uma interpretação garantista e integradora das normas penais e à luz do princípio da individualização das penas, previsto no art. 5º, incisos XLV E XLVI, da Constituição Federal, é possível sua adoção naqueles casos em que ocorra a constatação de que os fatores sociais surtiram influencia no cometimento do delito.

Por derradeiro, oportuno destacar que a proposta de acolhimento da teoria da coculpabilidade como atenuante genérica do art. 66 do Código Penal nas situações de miserabilidade econômica do agente, não se apresenta como uma justificativa, carta branca ou amparo ao cometimento de crimes.

Trata-se, em verdade, de uma proposta de compensação da reprovabilidade da conduta em face da sua peculiar condição social e as circunstâncias do caso concreto.

Trata-se, portanto, de proposta de superação do mito da igualdade em matéria penal e da livre determinação enquanto elemento constitutivo da culpabilidade, de modo a possibilitar a individualização da pena a partir do reconhecimento de que em uma sociedade onde o implemento dos objetivos fundamentais previstos no art. 3º da Constituição Federal não são minimamente atendidos, a miserabilidade social constitui fator que deve ser considerado diante a falência estatal em sua atividade de provedor de direitos fundamentais mínimos aos seus cidadãos.


REFERÊNCIAS

BUSATO, Paulo César.  Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. Rev Liberdades [internet],  n  08,  set-dez.  2011.  Disponível aqui.

CARVALHO, Aníbal Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.

MARÇAL, Fernanda Lira; FILHO, Sidney Soares. O princípio da co-culpabilidade e sua aplicação no Direito Penal Brasileiro. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago 2018.

PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. v. 2.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v. 1.

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