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Morosidade no processo penal: angústia prolongada

Morosidade no processo penal: angústia prolongada

Este resumo procura fazer uma reflexão sobre alguns aspectos abordados no artigo intitulado Direito, justiça e mito: uma leitura a partir de O processo, de F. Kafka, de autoria de Daniel Yamauchi Acosta e Ruth Faria da Costa Castanha.

A análise tem como referencial a angústia sentida pelos réus, como resultado de falhas na justiça, irregularidades e morosidade na prestação jurisdicional dos processos penais. Aborda ainda o descaso e a desumanização que os torna vulneráveis, restando para os acusados, marcas sociais que os acompanham em suas vidas de forma, às vezes, irreparáveis.

Escrito em 1920, pelo checo Franz Kafka e publicado postumamente em 1925 por Max Brod, amigo pessoal de Kafka, a obra O processo é um romance que encanta e assusta a todos que o leem, por narrar o drama vivido pelo personagem principal Josef K., que é acusado supostamente pelo cometimento de um crime, todavia, sem entender ao certo o teor da acusação ou quais infrações ele teria cometido. Então, K. passa a ficar à disposição do poder estatal e das leis para ser julgado.

Morosidade no processo penal

A literatura de Kafka na obra “O processo” apresenta-se como fonte inspiradora do estudo do Direito ao estimular o diálogo sobre o sentimento básico de justiça do ser humano, que sofre as mazelas do sistema punitivo e das instituições que o legitimam.  Destaca-se também as consequências negativas advindas da falta de informação e morosidade na prestação jurisdicional, os interesses e anseios dos atores envolvidos nessa relação.

É o Direito na literatura, e por isso mesmo é atemporal, retratando uma questão criminal ocorrida há quase um século, em um Sistema Judiciário inquisitório, mas, que permite a análise e crítica de práticas e procedimentos adotados ainda hoje, que ferem o direito de liberdade individual e da dignidade humana.

Outrossim, analisando em um contexto do sistema processual penal brasileiro, por ser questão corriqueira no nosso cotidiano, permite a cada leitor, de acordo com sua percepção, individualizar o conceito e entendimento de cada expressão no livro, dialogando com seu interior, a partir da postura e atitude de cada personagem, identificando-se com o ser que é ou como deveria ser.

A obra de Kafka comunica-se com o leitor de tal maneira que este passa a sentir a angústia experimentada pelo imputado Josef K., sua impotência, fragilidade e subordinação frente às leis, ou melhor, ao poder das instituições que o oprimem e que retiram o seu direito de liberdade ao se ver processado injustamente.

Assim, em consonância com os autores: “a literatura tem uma linguagem que lhe é própria: explica-se o indivíduo sob uma análise externa, capaz de denunciar as mazelas e as misérias humanas por meio do relato (seja real ou fictício, em tom descritivo ou onírico), uma forma eficiente de se estabelecer o diálogo com o leitor, levando-o a ponderar os limites da subjetividade e da existência humana” (ACOSTA; CASTANHA, 2017, p. 441).

Kafka destaca também sobre a complexa linguagem jurídica e da dependência do advogado, pois o Direito tem uma linguagem específica, culta, erudita para a maioria das pessoas e por isso mesmo, incompreensível para quem não é operador do Direito. Sobre a temática, vejamos:

Com as leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer que se desvie do crime. Gozará, com segurança, de sua liberdade e de seus bens; e isso é justo, pois que esse é o fim que leva os homens a se reunirem em sociedade (BECCARIA, 2012).

O Direito é uma ciência que regula a vida em sociedade através de normas, portanto, quando se diz que a Lei deveria ser sempre acessível a toda a gente, podemos fazer uma reflexão sobre a quantidade de leis existentes e a incapacidade de conhecer todas as leis, como bem pontuaram:

o consequente distanciamento entre direito e realidade social implica a indesejável elitização do saber jurídico, por meio  do ‘empoderamento’ de seus operadores, em face daqueles que ficam à margem de uma linguagem praticamente inacessível aos ‘não-iniciados’. (ACOSTA; CASTANHA, 2017).

Kafka também faz crítica ao sistema judiciário apresentando situações com minuciosos detalhes, que nos faz refletir sobre a veracidade desses acontecimentos no nosso cotidiano, a despeito da influência e poder de cada um dos atores envolvidos na questão judicial e na relação que estabelecem entre si.

Na obra em destaque, o personagem Josef K. vê-se em uma situação constrangedora ao descobrir que terá que responder um processo penal, o que retira-lhe a paz, pois passa a suportar a vergonha e desconfiança das pessoas do seu convívio social e principalmente de seus familiares como está referido no texto:

A sua absoluta franqueza era o único protesto que se podia permitir para rebater a opinião do tio, segundo a qual o processo era uma enorme vergonha (KAFKA, 2011).

Mas o indigitado não tinha como se explicar, ou se defender, pois não conhecia como funcionava o trâmite processual, além do que, negaram-lhe o direito à informação da sua situação, que seria o primeiro ato do processo penal para o réu, constatando-se que se trata de uma falha na justiça e no processo contra Josef K.

É possível imaginar o sentimento de mal-estar vivido por um indivíduo, apontado em um processo penal, em especial se for um equívoco, pois o acusado em questão passa a ser estigmatizado publicamente e socialmente, caracterizado como indigno de confiança.

Agora as atenções eram direcionadas para ele, o indigitado Joseph K., o que remete a uma ideia de que aquele que apresenta uma denúncia ou uma queixa seja o detentor da verdade e o réu/acusado, que vai se defender de tal acusação, seja o culpado. O fato é que ao ser indiciado, o réu fica com sua imagem maculada, colocada em uma vitrine para apreciação e especulação de seus pares.

O nosso ordenamento jurídico aponta no título VIII, do Código de Processo Penal, quais os sujeitos envolvidos na relação processual penal, quais sejam: o juiz, o Ministério Público, o acusado e seu defensor (advogado ou Defensor Público), os assistentes e auxiliares da justiça além dos peritos e intérpretes.

Lopes Jr. (2015, p. 51) leciona que: “o Estado é o titular soberano do poder de punir, que será exercido no processo penal através do juiz, e não do Ministério Público”. Portanto, cabe ao Ministério Público o exercício da pretensão acusatória. De acordo com Carmellutti, apud Lopes Jr. (2016, p. 259) ao acusador não lhe compete a potestas de castigar, mas só de promover o castigo.

Conforme ensina Lopes Jr. (2015):

o objeto do processo penal é a ‘pretensão acusatória’ pretensão acusatória (ius ut procedatur), o poder de proceder contra alguém, que é uma condição indispensável para que, ao final, o juiz exerça o poder de punir.

Entretanto, é preciso que haja um terceiro que decida a questão:

esse terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há (Beccaria, 2012).

E para isso, é necessário que a lei penal diga que determinada conduta é crime.

Nossa Constituição Federal de 1988, em seu art.  inciso XXXIV, preceitua que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, portanto se a conduta não se adequa ao tipo penal é considerada atípica.

É no contraditório e na ampla defesa que se oportuniza a igualdade de oportunidade das partes, e no caso do réu, para defender-se da própria imputação criminosa, visto que o onus probandi é do órgão de acusação. Nesse caso, deve haver maior atenção e respeito ao devido processo penal, pois trata-se de decisão que vai mudar a vida do principal interessado, do sujeito passivo dessa relação, o acusado.

Há um outro elemento, talvez o mais importante da relação processual para o acusado, que é o tempo. Segundo Lopes, Jr. (2015) o Direito não reconhece a relatividade ou tempo subjetivo:

o processo não escapa do tempo, pois ele está arraigado na sua própria concepção, enquanto concatenação de atos que se desenvolvem, duram e são realizados numa determinada temporalidade.

Para o Direito, o tempo mencionado com precisão é o do calendário.

Decerto que a estrutura formalizada de um processo judicial siga um procedimento em um lapso temporal até a obtenção de uma resolução ou resposta definitiva pela Justiça. Esse é o tempo necessário para observância na estrutura do procedimento do devido processo legal, por respeito às regras e garantias constitucionais asseguradas.

Entretanto, seu tempo e espera, por vezes, vai além da compreensão dos próprios atores envolvidos, por não existir no Brasil, um limite temporal exato para duração do devido processo legal, não podendo mensurar o princípio da razoável duração do processo.

Lopes Jr. (2015), referindo-se ao tempo e penas processuais, aduz que:

quando a duração de um processo supera o limite da duração razoável, novamente o Estado se apossa ilegalmente do tempo do particular, de forma dolorosa e irreversível. E esse apossamento ilegal ocorre ainda que não exista uma prisão cautelar, pois o processo em si mesmo é uma pena.

Ademais, embora o Estado tenha a exclusividade do poder punitivo, não lhe confere a prerrogativa de aplicar essas sanções de maneira arbitrária ou de confiscar por tempo indeterminado o direito do réu condenando-o a viver em constante tensão e espera, pois isso fere o princípio da dignidade humana.

Portanto, o processo penal não deve ter uma dilação por tempo indeterminado, a ponto de prescrever, como também não deve atropelar garantias fundamentais, encurtando o caminho em nome da maior eficiência para se chegar a uma sentença em desacordo com o direito e ao devido contraditório em todas as fases.

É importante observar, que na obra Kafkiana, não existe tempo nem espaço lineares, não se sabendo ao certo em que fase da instrução processual de Josef K. se encontra, assim como não se explica ao certo como funciona o espaço físico, conforme afirmou (SELIGMANN, 2013):

Tudo pode estar ao mesmo tempo no mesmo lugar.

É muito figurativo e imaginário, retratando o sofrimento sentido somente pelo acusado, como pode ilustrar também a interpretação do trâmite processual para quem não tem conhecimento técnico da ciência jurídica, simbolizando mais ainda a posição de desigualdade e inferioridade frente ao poder estatal que o oprime.

Percebe-se a relatividade do tempo na seguinte narrativa:

[…] Depois, tirando o relógio da algibeira, olhou rapidamente para Josef K. ― O senhor já devia ter-se apresentado há uma hora e cinco minutos ― disse. Josef K. quis responder qualquer coisa, mas não teve tempo, pois, mal o homem acabara de falar, levantou-se um protesto geral na metade direita da sala (KAFKA, 2011).

Perceba como K. manifesta-se com relação ao mencionado atraso: “Posso ter chegado atrasado, mas estou aqui”, possivelmente acreditando, que era direito seu ser ouvido pelo simples fato de ter comparecido, o que não era de todo modo prejudicial, pois não deveria ser prejudicado pela ausência ou atraso do indigitado em um ato processual.

Pode-se inferir do texto que o tempo tem sentido diferente para cada uma das partes. O que é razoável para um pode não ser para o outro, embora para o acusado, resta-lhe apenas acatar as normas que regem o processo penal, pois a elas fica submetido.

A submissão ao sistema penal é retratada em diversas passagens:

[…] por conseguinte, caso Vossa Excelência atribua qualquer importância a este suposto tribunal, poderá extrair grande proveito em ouvir-me. Peço, portanto, que adie para mais tarde a réplica às minhas palavras, pois não tenho tempo e não tardo a ir-me embora. (KAFKA, 2011).

Nesse contexto, Kafka retrata a impotência do homem diante dos procedimentos burocráticos e incompreensíveis para ele. Também retrata a morosidade processual que levam décadas para terem um resultado conforme se depreende da passagem:

e como duram os processos deste gênero, especialmente há uns tempos para cá! (KAFKA, 2011).

No entanto, porém, o processo não trata somente de resolver questões jurídicas de fatos pretéritos, mas resolver uma pretensão jurídica ímpar na vida do réu, envolvendo também interesses de sua família.

Em relação à demora processual, é comum, da fase de instrução até a decisão final, o mesmo processo passar pelas mãos de vários juízes, por razões diversas. Essa demora pode decorrer de vários fatores como férias, promoção, afastamento do juiz por motivo de força maior entre outros, e, nesse período, outro magistrado responder cumulativamente pela vara na qual se encontra o processo.

Esses contratempos resultam em processos parados, por falta de condições reais de dar continuidade em tempo hábil, o que inviabiliza, muitas vezes, a observância e correção de falhas na própria ação penal. Outrossim, o juiz da instrução à época dos fatos é o mais indicado para julgar o processo, por conhecê-lo melhor. O processo em si, relata fatos pretéritos, entretanto, a vida é contínua, não para, razão pela qual a excessiva duração da demanda penal é prejudicial para ambas as partes.

A celeridade do andamento processual contribui para o aprimoramento da prestação jurisdicional, pois a natural demora prejudica os dois lados da relação processual, acusação e defesa. De um lado põe em risco a sociedade ao permitir a impunidade de culpados, seja pelo benefício do esquecimento dos fatos, seja pela prescrição, e, do outro, resta apenas angústia do réu prolongada pela demora.


Nota: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O texto da vez, formulado pela colega Eliane Sousa Silva, foi feito com base no texto “Direito, justiça e mito: uma leitura a partir de “O processo”, de F. Kafka”, de Daniel Acosta Yamauchi e Ruth Faria da Costa Castanha – publicado na Revista ANAMORPHOSIS (veja aqui). Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)


 REFERÊNCIAS

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ACOSTA, Daniel Yamauchi; CASTANHA, Ruth Faria da Costa. Direito, justiça e mito: Uma leitura a partir de O processo, de F. Kafka. Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 2, julho-dezembro 2017.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das Penas. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo. Madri: Alianza. 2012.

Da redação. Realidade visceral, a vida dentro de uma cela superlotada. Revista Justiça e Cidadania. Ed. 222. Disponível aqui. Acesso em 17/02/19.

DUARTE JúNIOR, Alonso Pereira; SILVA, Eliane Sousa. A prescrição virtual e suas controvérsias. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 165, out 2017. Disponível aqui. Acesso em fev 2019.

LOPES Jr, Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

LOPES Jr, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

NICOLITT, André Luiz. Processo penal cautelar: prisão e demais medidas cautelares. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 2ª ed. São Paulo: RT, 2012.

Poder Judiciário Conselho Nacional de Justiça. Ouvidoria. 34.º Relatório Trimestral da Ouvidoria do Conselho Nacional de Justiça Abril, maio e junho de 2018. Disponível aqui.

Rede justiça criminal. Encarceramento em massa não é justiça. Vídeo disponível aqui. Acesso em 17/fev/19.

SELIGMANN-SILVA, M. A doutrina das portas em Kafka. Revista Terceira Margem (online). Vol. 17. N. 28. jul.-dez. 2013. p. 261 – 291. Disponível aqui. Acesso em 05.fev.2019.


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Eliane Sousa Silva

Bacharelada em Direito pelo Centro Universitário UNINOVAFAPI. Funcionária Pública do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, exercendo a função de Técnico Judiciário. Pós-graduada em Gestão Pública pela UFMA. Conciliadora/Mediadora Judicial voluntária, atuando no 2º CEJUSC de Timon/MA.

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