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O artigo 212 do CPP e necessidade de observância das “regras do jogo”

O artigo 212 do CPP e necessidade de observância das “regras do jogo”

A prática jurídica nos ensina que o Código de Processo Penal é norma federal, de competência privativa da União (art. 22, I da CF/88) e se aplica em todo o território nacional, mas, que os magistrados brasileiros possuem uma adaptação própria, individual, sobre estas “regras do jogo”.

Em síntese, no aspecto de Ciências Políticas, dentro do jogo processual penal estamos diante do Estado, o Leviatã, que especialmente pelas consequências dos seus atos (prisões e invasões diversas à privacidade) deve ser controlado – Princípio da Legalidade – e, especialmente, possuir atuação guiada, de maneira a evitar abusos e excessos.

Entretanto, inúmeras são as situações em que se abandonam as regras do jogo e o sistema acusatório processual, especialmente por parte daqueles que conduzem o ato, dentre as quais, se destaca o desrespeito ao cross examination, ao exame cruzado das testemunhas, que se encontra disposto no art. 212 do Código de Processo Penal.

Assim dispõe o quase esquecido dispositivo:

Art. 212.  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

Nota-se que o artigo apenas menciona a possibilidade de questionamentos por parte do juiz apenas em seu parágrafo, trazendo a tônica do sistema acusatório para as partes, de maneira que seja mantida a sua função de receptor da prova. Salienta-se, trata-se de dispositivo claro, objetivo e que se encontra tão explícito na sua redação que assusta a sua malversação.

Em situações concretas, o que normalmente acaba ocorrendo é a assunção do magistrado presidente da solenidade, diante da ausência do representante ministerial, na figura do acusador, seja invertendo a ordem dos questionamentos, tomando a palavra e iniciando as questões para as testemunhas arroladas para o ato, ou, até mesmo, quando presente o representante ministerial, escolhe seu “lado no processo” e vincula-se à hipótese acusatória. Infelizmente, trata-se de questão que já foi, inclusive, objeto de reforma em sede recursal, vejamos:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL MAJORADO (ART. 217-A C/C ART 226, INC. II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). PRELIMINAR DE NULIDADE DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO RECONHECIDA. CASO DOS AUTOS EM QUE A MAGISTRADA TOMOU PARA SI, DURANTE TODA A INQUIRIÇÃO DA TESTEMUNHA, A BUSCA DA VERDADE/PROVA, UTILIZANDO AS DECLARAÇÕS DA TESTEMUNHA PARA CONDENAR O RÉU, EVIDENCIANDO, DESSA FORMA, CLARO PREJUÍZO À DEFESA. INTELIGÊNCIA DO ART. 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO VIOLADO. PREJUÍZO EVIDENCIADO. NULIDADE DECRETADA. Caso em que a Magistrada que presidiu a solenidade de oitiva da testemunha Maria […] desatendeu aos ditames do artigo Art. 212 do Código de Processo Penal. A Magistrada, ao realizar a inquirição da testemunha Maria […], além de produzir ela própria a integralidade da inquirição, formulou à testemunha perguntas fechadas e ratificativas de hipótese de viés acusatório, revelando vinculação psicológica à tese acusatória, ainda que sem o perceber, o que é incompatível com a isenção interna e psicológica, pressuposto constitucional (de validade) de imparcialidade do Juiz. Na ocasião, o Ministério Público, dominus litis da ação penal, conforme está nos autos, somente recebeu a palavra ao final de longa inquirição protagonizada pela Magistrada, limitando-se, o Parquet, a dizer que não tinha perguntas a formular, ratificando, dessa forma, a inquirição da juíza, ao mesmo tempo em que irregularmente se viu dispensado de seu mister acusatório, esgotado na inquirição da Magistrada. Assim sendo, pois, não somente restou violado o princípio acusatório, mas, casuisticamente, ficou evidenciado prejuízo ao acusado, já que o depoimento da testemunha Maria […] foi utilizado na formação da convicção do julgador para a condenação do apelante. O ato processual é, pois, nulo e tem de ser renovado. PRELIMINAR DE NULIDADE ACOLHIDA. MÉRITO DO RECURSO DEFENSIVO PREJUDICADO. (Apelação Crime Nº 70076905272, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 28/06/2018)

Como se observa do curioso precedente acima, ainda persiste a figura do magistrado ativista, aquele que escolhe lado, aquele que, nas palavras de Aury Lopes Jr, situa-se como juiz-ator-protagonista-da-instrução, de forma que, dentro das oportunidades em que o operador do direito verificar o desrespeito às regras do jogo, impende seja prontamente apontado a nulidade, especialmente pugnando para o registro em ata do vício alegado, a fim de que, além de obstar no momento a prática abusiva, haja impugnação tempestiva.

Outra crítica reside exatamente no modelo de nulidades que os juízes interpretam ser o adotado pelo Código de Processo Penal – pas de nullité sans grief – ou seja, a necessidade de apontar prejuízo decorrente da nulidade apresentada. Ora, o simples fato da desobediência ao dispositivo legal deveria representar afronta suficiente para seu reconhecimento, de maneira que, qualquer édito condenatório que possa ser fundamentado na oitiva viciada da testemunha transcende qualquer “mera irregularidade sanável”.

Assevere-se, o respeito às regras do jogo em hipótese alguma significa impunidade, entretanto, o descompromisso no seu cumprimento, em verdade, é o que pode ser causa de impunidade. O devido atendimento às normas de processo penal nos encaminha para o cumprimento do modelo acusatório, bem como para a atuação conforme dos participantes, gerando estabilidade, confiança e legalidade aos atos produzidos.


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