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O caso Miguel é um “hard case”

O caso Miguel é um “hard case”

Em meio a uma pandemia, em meio a uma crise política e em meio a uma onda de protestos mundo afora, ocorreu, com muito pesar, mais uma morte. Agora morre um garotinho de apenas cinco anos, após cair do 9° andar de um luxuoso prédio no centro de Recife.

O caso rapidamente ganhou vasta repercussão. Todos se indignaram com o ocorrido. A patroa da mãe do garoto foi presa em flagrante, por homicídio culposo, pois foi quem colocou o menino Miguel no elevador que subiu até o andar em que a tragédia se deu. Presa, porém logo liberada após pagar fiança. A patroa responderá em liberdade durante o decurso das investigações.

Todo o caso é recheado de elementos que podem gerar no leitor apaixonado certo desconforto e sentimento de revolta. Contudo, também existem elementos que devem ser trabalhados pelo viés analítico, a fim de evitarmos equívocos teratológicos. Na justiça penal todo erro custa uma vida. Não podemos ser ingênuos quanto a análise do caso.

Em breve resumo, a tragédia se deu da seguinte forma: O garoto acompanhou a mãe no serviço. Em determinado momento a mãe da vítima deixou o garoto sob responsabilidade da patroa, enquanto passeava com os cachorros. Minutos após a mãe do garoto deixá-lo com a patroa, câmeras filmaram a mulher levando o garoto até um elevador e apertando o andar que correspondia a cobertura do prédio.

O garoto que queria ver a mãe entra desacompanhado no elevador e no 9° andar desembarca. Saindo do elevador, abre uma porta, caminha até uma janela e a abre. Pula a janela, se pendura na sacada e cai. Socorrido ainda com vida, veio a morrer no hospital. Eis a tragédia.

A princípio discute-se a culpabilidade da patroa. Fora imputado crime de homicídio culposo. Aqui, há ressalvas: com as informações disponíveis à investigação até o momento, é possível afirmar de forma inequívoca que houve culpa?

É sabido que um dos pressupostos da modalidade culposa é o fator da previsibilidade do resultado pelo agente culposo. Sobre isso pondera o Cezar Roberto Bitencourt:

Ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível se não houver obrado, pelo menos, com dolo ou culpa.

Trabalhando a fundamentação da modalidade culposa, Nelson Hungria, um dos maiores criminalistas do nosso país afirma:

’O que decide não é a atenção habitual do agente ou a diligência que ele costuma empregar in rebus suis, mas a atenção e diligência próprias do comum dos homens; não é a previsibilidade individual, mas a medida objetiva de precaução imposta ou reclamada pela vida social. (Grifos meus).

Na mesma linha, segue o Damásio de Jesus:

não se pergunta o que o homem prudente deveria fazer naquele momento, mas sim o que era exigível do sujeito nas circunstâncias em que se viu envolvido. (Grifos meus).

Fato é que com o elemento probatório do caso não podemos determinar que o resultado foi de alguma forma previsível. Para constatar se o agente possuía previsibilidade, devemos nos colocar em seu lugar e compreender as vias possíveis à previsibilidade do resultado.

O resultado produzido fugiu completamente da previsão de ocorrência. Não é suficiente alegar de maneira abstrata que o resultado era previsível simplesmente por se tratar de uma criança; muitos resultados danosos são possíveis em muitas ações.

Ao que parece, com as provas até então existentes, não podemos alegar homicídio culposo, haja vista que conforme a tradição doutrinária majoritária, houve uma causa fortuita, que fugiu ao dever que se espera de uma pessoa comum. Além do mais, sabemos hoje que a responsabilidade objetiva que vêm sendo aplicada ao caso é completamente avessa ao princípio da culpabilidade.

Há também quem discuta o caso sob a ótica do dolo eventual, que ao que parece também não se aplica ao caso em questão. Isso porque a jurisprudência nacional caminha na via (limitadíssima) de que o dolo se limita à mera vontade do agente.

Fato é que para além dos nossos tribunais tupiniquins, cada teórico responde de uma forma distinta. Eberhard Schmidhäuser, por exemplo, trata a questão do dolo de acordo com o nível de conhecimento de determinada prática danosa, dividindo o conhecimento em duas instâncias: 1. Conhecimento atual e seguro dos fatos. 2. Conhecimento inseguro dos fatos, porém ciência dos riscos da possibilidade de lesão. O jurista ainda argumenta que o conhecimento seguro dos fatos para determinada prática já atesta o estado doloso, pois é como se houvesse a partir da ciência dos fatos e suas respectivas consequências um ‘perigo esperado’.

O dolo não existe na nomenclatura internacional apenas com o elemento volitivo, como faz parecer a nossa jurisprudência pátria. O dolo existe da forma tal como costumamos conhecer (consciência e vontade) após uma mudança do Código Penal, sob influência da Teoria Finalista, que trouxe a intenção do agente da culpabilidade para o próprio tipo penal, pois a teoria predominante à época, a teoria causal-natural, não possuía uma distinção dentro do próprio tipo penal em relação ao dolo.

No Brasil, nós temos doutrinadores que defendem a existência do dolo sem vontade, isto é, sem o elemento volitivo. Um destes doutrinadores é o Luís Greco, que defende a posição, inclusive publicando um artigo em Portugal sobre o assunto, como também há o Eduardo Vianna, que analisou a evolução do dolo e tende também a defendê-lo sem a necessidade do costumeiro elemento volitivo.

Sem as devidas provas e os devidos indícios, estamos limitados a impossível tarefa de sentenciar a agente baseando-nos meramente no que julgamos razoável. A imprudência demonstra-se óbvia. O caso está genérico. Não podemos tomar partido sem que antes haja robusto material probatório para fundamentar-nos. Estamos diante de um legítimo hard case!


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