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Para que necessitamos do Processo Penal?

Por Mariana Py Muniz Cappellari

De acordo com o Professor Aury Lopes Jr. é imprescindível compreender a evolução da pena de prisão para chegar-se ao nascimento e a evolução do processo penal.[1] Afinal, a história do processo penal nada mais é do que a própria história da pena.

Dessa forma, pode-se dizer que o processo penal nasce quando da proibição da vingança privada e da tomada por parte do Estado do monopólio da violência e do poder de punir. Pois, conforme bem denuncia Busato,[2] o direito penal nada mais é do que a violência institucionalizada, organizada, formalizada e socialmente aceita.

Nesse sentido, Giacomolli[3] também afirma com propriedade: “o processo surgiu como um mecanismo para evitar a vingança feita pelas próprias mãos, para eliminar a autotutela, para evitar a dominação do mais forte, resguardando o sujeito frente ao outro, o grupo social frente a outro grupo social, como veículo para aplicar, de forma racionalizada e alheia aos interesses dos envolvidos, a sanção criminal.”

Por certo, daí advém que uma das características do processo penal é a sua instrumentalidade. Aqui, chamamos atenção ao sentido de servir de instrumento a aplicação do direito penal e da pena em si, o chamado princípio da necessidade do processo. Entretanto, questionamos: A que preço? Ou melhor, a qualquer preço?

Sim, porque não podemos nos esquecer de que em solo brasileiro é vigente Código de Processo Penal o qual data do ano de 1941, confeccionado, portanto, em período no qual se fazia estabelecida uma ditadura, revelando, assim, influxo autoritário e inquisitorial. Aliás, é a partir desse ponto que se alicerça a necessidade de leitura da legislação infraconstitucional referida aos olhos da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, quanto mais quando se verifica que mesmo após a instauração de uma nova ordem constitucional, no nosso caso, com a instituição de um Estado Democrático de Direito, a qual opta politicamente por um sistema processual ‘acusatório’, entregando a titularidade da ação penal a órgão diverso do Julgador, ainda presenciamos reformas pontuais inquisitivas, como, por exemplo, a do ano de 2008, mais propriamente no que diz ao seu art. 156 do CPP.

E é por isso, também, que as garantias processuais dessa feita possuem um propósito, qual seja? Assegurar ao indivíduo a sua dignidade enquanto pessoa, servindo como um dique (tal qual Zaffaroni propõem) à expansão do Poder Punitivo e ao seu arbítrio, haja vista que todo o Poder tende a se exacerbar.

Ocorre que na atualidade presenciamos um fenômeno que tenciona a isolar as garantias processuais, eis que estas se inserem no âmbito do processo em si mesmo, o qual se torna cada vez mais não dispensável, mas menos requisitado. Explico-me.

Ao analisarmos a Lei nº 12.850/2013, por exemplo, a qual define a organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, verificamos em seu artigo 3º, mais precisamente, um rol de meios de obtenção de prova, os quais se dão completamente fora do processo em si: a colaboração premiada, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, a ação controlada, a interceptação de comunicações telefônicas, a infiltração por policiais, entre outros.

Mas por que mesmo se entende por ‘prova’ apenas aquela promovida no âmago do processo? E aqui não se desconhece a existência de ‘provas’ formadas fora do processo. Ah! Por que assim preservamos a garantia do contraditório (sem prejudicar a formação da convicção do Juiz), que nesse caso, ainda que existente de forma diferida (o contraditório), por certo reduz sobremaneira as chances defensivas (se é que ainda as tenho, uma vez que o pacote ‘probatório’ já se encontra fechado), apontando assim para uma espécie de pré-acusação (desconsiderado o Estado de inocência), a qual em muitos casos vem colada à antecipação de pena, com o decreto de prisão provisória.

Nesse marco, portanto, nos questionamos novamente: A que serve o processo penal? A mera aplicação do Direito Penal? A espetacularização? A estigmatização? Ou, com Rui Cunha Martins,[4] a redenção de promessas incumpridas, patrocinando a vingança popular face à desigualdade socioeconômica persistente?

Não tenho respostas, apenas dúvidas. Entretanto, penso que dessa forma estamos é ainda muito próximos da vingança. Agora, é verdade, pública e institucionalizada. Talvez não haja mesmo como se dissociar a história do processo penal da história da pena, pois para compreender a que serve ou a quem serve esse instrumento, que deveria ser mais de garantias do que propriamente de aplicação do direito penal, precisamos compreender antes de tudo a pena em si mesma.

E aí a história muda de figura, afinal, o que é irracional foge por completo da racionalidade.

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[1] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[2] BUSATO, Paulo César. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2013.

[3] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[4] MARTINS, Rui Cunha. A Hora dos Cadáveres Adiados. São Paulo: Atlas, 2013.

 Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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