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Psicologia do homicídio


Por André Peixoto de Souza


Jacques-Alain Miller, comentando o livro A quem o assassino mata?, de Silvia Elena Tendlarz e Carlos Dante Garcia, sugere para análise e complemento a segunda parte de Algumas notas adicionais à interpretação dos sonhos como um todo, de Freud, precisamente sobre a responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos.

O debate gira em torno das distinções entre crime e sonho imoral (ou mesmo criminoso). Seria demasiado reducionista apresentar a dicotomia real versus imaginário (vida real e sonho), pois desde a descoberta freudiana do inconsciente, e dos significados dos sonhos – como desejos inconscientes de transgressão: egoísmo, perversão, crime –, aquele “imaginário” (sonho) de certa forma expressa ou pelo menos identifica o sujeito.

Tanto é assim que Freud responderia afirmativamente sobre uma responsabilização do sujeito pelos sonhos imorais, pois tanto o sonho quanto a imoralidade constituem nosso ser. Não só de honra, mas também de horror estamos constituídos, e o sentimento de culpa (expurgado conscientemente pela realização do crime ou pela confissão) identifica o quão criminosos inconscientes somos.

Isso explica, em parte, o “fascínio” que temos pelo crime e pelo criminoso: de certa forma, o criminoso realiza nossos desejos reprimidos, pois, na verdade, nada é mais humano que o crime (esse é o título-proposta do texto de Miller). Mas o espetáculo da condenação e principalmente da execução faz eclodir o paradoxo desse fascínio: o ato legal de matar – o Estado que mata, no caso do cumprimento de pena de morte – também é aplaudido na praça pública da história. Da mesma forma, as penitenciárias fétidas e os sanguinolentos jornais e programas de TV com máxima audiência.

No fim, o retorno ao problema da verdade, que pressupõe – ou contém – realidade e imaginário e, além, se desfaz ou se desvia pelas perspectivas (pontos de vista, locus físico, ideologias, crenças). A verdade no direito, e precisamente no direito penal, deve levar em conta essas limitações, pois a verdade “no processo” – a partir da qual se materializa a pena – sempre escapa do mundo fenomênico, restando, apenas, o discurso.

O ser humano se compõe, metafisicamente (desde os gregos clássicos), da trilogia razão-sentimento-vontade. A razão, significada pelo pensamento ou pela capacidade cognitiva de discernir e entender os atos por si praticados, conecta-se com o sentimento e com a vontade, elemento este volitivo da ação, e na interseção desses três elementos – pensar, sentir e agir – eclode o ser humano.

A psicopatia se revela a partir da negação ou do desprovimento de sentido na ação e na reflexão. O agir racional isento de sentimento suscita o comportamento psicopata, calculista e ausente de culpa (porque ausente de sentimento de culpa), assim como o agir emocional desprovido de razão significa impulso inconsciente – que muitas vezes, igualmente, beira o crime ou o pecado ou a transgressão moral. A razão somada à emoção mas sem ação (vontade) caminha da inércia à depressão-suicídio.

A eterna dicotomia do homem bom versus homem mau: o bom está na sociedade; o mau merece ser segregado. Mas quem diz ou classifica os homens em bons ou maus? A partir de quais referências? É verdadeira a referência homem bom = sociedade; homem mau = prisão? A sociedade está repleta, afinal, de homens bons? As penitenciárias estão abarrotadas, enfim, de homens maus?

A problemática já está posta, de outra maneira, por Juarez Cirino dos Santos, em As raízes do crime…, quando questiona se a decisão judicial criminal (sentença penal) condenatória é um verdadeiro processo de elaboração intelectual pautada e sopesada nas provas e argumentos, ou se é mera expressão de uma autorização prévia do inconsciente, racionalizada pelas categorias jurídicas que a legitimam. É óbvio que a mentalidade tem muito a nos dizer: a formação cultural do conceito de criminoso ou sujeito perigoso, o papel da mídia na rotulação da delinquência, a tradição judaico-cristã impregnada por uma moral implícita, o sistema econômico que de forma mentirosa pretende reduzir desigualdades sociais mantendo dicotomias no seu modo de produção.

Perdura a dicotomia. Mas a psique adentra firmemente nesse banquete, como poderoso tempero.


Excerto de meu texto “Uma psicologia do homicídio e da punição”, publicado na revista Ius Gentium, v. 11, pp. 19-25.

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André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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