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O reconhecimento fotográfico como fonte de injustiças

O reconhecimento fotográfico como fonte de injustiças

O artigo 226 do Código de Processo Penal dispõe sobre o reconhecimento de pessoas, o qual deverá ser realizado de acordo com as regras ali prescritas.

Referidas regras têm por objetivo assegurar a regularidade do ato, bem como evitar ou ao menos minorar a possibilidade de erros levados a efeito por induzimentos, ainda que involuntários.

O reconhecimento a que se fez menção, contudo, refere-se ao pessoal, ou seja, aquele que tem por objetivo a identificação de uma pessoa – não um objeto – que, em tese, praticou uma infração penal.

Ocorre que é normal nos diversos distritos policiais que o reconhecimento seja efetuado por intermédio de fotografias, ou seja, apresenta-se à vítima o retrato de diversos indivíduos a fim de que possa identificar aquele que supostamente cometeu o crime.

Apesar de esta prática ser normal, não é prevista em lei, o que não a torna necessariamente ilegal. Trata-se de uma prova inominada a ser valorada pelo juízo em consonância com as demais que forem produzidas ao longo da instrução.

Pois bem, apesar de o reconhecimento fotográfico não estar previsto em lei, é cediço que sua realização deve ser precedida das formalidades previstas no mencionado artigo, ou seja, a vítima deve ser convidada a descrever o suposto autor da infração, que se possível será colocado – seu retrato, por óbvio – ao lado de outros lhe sejam semelhantes (HC 232.960 STJ).

A adoção destas formalidades é essencial para que a vítima não seja induzida a reconhecer alguém parecido com o autor do fato; é uma garantia, não obstante, para que o investigado não seja indevidamente confundido.

O professor Tourinho Filho (Processo Penal, Vol. 3, 22. ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 335) manifestou-se da seguinte forma acerca deste assunto:

E se se tratar de reconhecimento fotográfico? Depende do caso concreto. Se a autoridade solicitar à pessoa que vai proceder ao reconhecimento a descrição daquela que vai ser reconhecida e, a seguir, exibe-lhe cinco ou seis fotografias de pessoas que guardem entre si certa semelhança para que ela aponte qual delas retrata o criminoso, tal ato aliado a outros elementos constantes dos autos pode ser valioso.

Destarte, apesar de os procedimentos descritos no artigo 226 serem obrigatórios, ao menos quando houver a necessidade de se fazer o reconhecimento, eles não são adotados na imensa maioria dos distritos, o que inevitavelmente colabora para que ocorram inúmeros erros judiciários com a atribuição de culpa a quem nada tem a ver com o fato.

Não estou afirmando que os policiais agem dolosamente ou mesmo que são relapsos no exercício de suas funções. A questão é que além de terem uma imensa quantidade de trabalho e uma estrutura extremamente precária possuem a ideia equivocada de que as providências atinentes ao reconhecimento são perda de tempo.

Percebam, não se está a tratar sequer de desídia, mas de uma ideia errônea, enraizada na mente de alguns, no sentido de que a adoção dos procedimentos previstos em lei apenas atrasará o bom andamento dos trabalhos.

Voltando ao cerne da questão, quando a vítima é convidada a reconhecer muitas vezes é colocada defronte da foto do investigado e por um curtíssimo espaço de tempo; isto, aliado à natural pressão para que aponte aquele a quem os policiais, a priori, concluíram ser o autor do crime, dá ensejo a inúmeros erros.

A vítima, talvez de forma involuntária, sob pressão e com um sentimento latente de vingança por vezes reconhece a pessoa que lhe foi apresentada sem efetivamente ter a certeza de que foi ela quem cometeu a infração; não há tempo, tampouco espaço para arrependimentos.

Ocorre que esta situação é deletéria como um todo, pois as consequências decorrentes da condenação de um inocente vão além da repercussão na esfera privada deste.

Alguns institutos chegaram a estudar o assunto. De acordo com uma matéria veiculada pelo jornal The Boston Globe “estudos científicos revelaram que, nos Estados Unidos, ocorrem mais de 75 mil identificações de suspeitos por ano, um terço das quais são incorretas”.

Embora a divulgação do estudo tenha ocorrido há alguns anos acredita-se que o cenário não foi substancialmente modificado, seja nos Estados Unidos, local em que foi realizada a pesquisa, seja no Brasil.

Aqui, de acordo com matéria publicada ano passado, não havia estudos de órgãos como o Departamento Penitenciário Nacional ou mesmo do Conselho Nacional de Justiça acerca de prisões decorrentes de erros.

Não obstante, ainda de acordo com a matéria “mais do que um erro pontual, casos de prisões injustas costumam ser fruto de equívocos em série. Os suspeitos são reconhecidos a partir de fotos; policiais muitas vezes são as únicas testemunhas de um crime; e há uma carência do uso de tecnologia nas investigações”.

Ora, inexistem dúvidas de que as condições a que se fez menção persistem, notadamente nos tempos atuais em que a persecução criminal está em evidência. Infelizmente a investigação, quando ocorre – e a instrução processual estão sendo efetuadas a toque de caixa e obedecendo a sistemas padronizados que desconsideram as particularidades do caso concreto.

Muito bem, deixando a digressão de lado, após a realização do pseudo reconhecimento apresenta-se à vítima o auto padronizado por intermédio do qual esta, ao apor sua assinatura, ratifica todo o procedimento.

Ocorre que neste documento consta a informação de que foi convidada a descrever o autor da infração, além de lhe terem sido mostradas diversas fotografias; em resumo tudo não passa de um teatro mal ensaiado.

É lamentável, mas isto ocorre de forma corriqueira e o problema, contudo, não se limita aos distritos policiais.

Durante a instrução o réu é apresentado à vítima para que esta possa fazer o reconhecimento – agora pessoal, e corroborar o fotográfico efetivado na delegacia de polícia; nesta oportunidade ocorrem novas – e repetidas – violações.

É que invariavelmente a vítima não é convidada a descrever o réu; este, por sua vez, não é colocado ao lado de pessoas que possuem as mesmas características físicas. Se o reconhecimento é efetivado, bingo, a condenação é medida de rigor, ainda que as formalidades previstas no artigo 226 tenham sido ignoradas.

Neste caso argumenta-se que “os elementos informativos colhidos na investigação” puderam ser confirmados “em contraditório judicial” (art. 155 do CPP).

Caso a vítima, contudo, deixe de reconhecer o réu em juízo isto não significa que ele será absolvido.

Já participei de casos em que o réu foi condenado mesmo não tendo sido reconhecido perante o magistrado, embora tenha sido identificado no distrito policial.

A argumentação expendida centrou-se no tempo decorrido entre os fatos e a instrução, o que teria dado ensejo ao não reconhecimento em juízo. O efetivado na delegacia, não obstante, deveria ser considerado, posto que realizado no calor dos fatos, quando a vítima ainda tinha a imagem clara do infrator em mente.

Nem preciso falar, neste caso, a respeito da absoluta violação do disposto no artigo 155 do CPP.

Outro argumento utilizado para a desconsideração das formalidades inerentes ao reconhecimento refere-se à suposta não demonstração, pelo advogado, do prejuízo que teria advindo ao seu cliente, como se o desrespeito às garantias em si já não desse ensejo à nulidade.

Ora, com o devido respeito, se mesmo estando clara a violação ao contido no artigo 155 do CPP o réu não é absolvido, como aquele conseguirá fazer prova do prejuízo decorrente da não observância do estatuído no Código de Processo? É uma tarefa extremamente hercúlea, quiçá impossível.

Enfim, finalizo conclamando os advogados a que se insurjam contra reconhecimentos fictícios, ou seja, os que são efetivados em desacordo com a lei, ainda que isto possa parecer inócuo.

Lembremo-nos que a “injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin Luther King).

Se as violações ocorrerem em juízo requeiram que tudo conste da ata a fim de poderem, se o caso, submeter a questão ao tribunal. Ao final torçam para que o recurso seja julgado por uma câmara, por assim dizer, que respeita as regras do jogo, caso contrário já sabem.

Para finalizar, a menção a palavra torcer, que dá a ideia de aleatoriedade, pode parecer despropositada, mas faz todo o sentido, pois no processo penal além de capacidade o advogado também tem que, nos tempos em que vivemos, contar com a sorte.

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