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O que o Tribunal do Júri tem a ver com as eleições?


Por Vilvana Damiani Zanellato


De tempos em tempos, diversos assuntos tomam conta dos espaços disponíveis em eventos de debate sério, nas redes sociais, na mídia em todos os âmbitos, nas salas de aula, no mero bate-papo de senso comum.

Neste ano, dentre inúmeros temas, já se polemizou a “Operação LavaJato”, o impeachment, o estupro coletivo, os ataques terroristas, as Olimpíadas e, obviamente, assim será com as eleições que se aproximam.

A parte mais densa do processo eleitoral se iniciou no dia 5 de agosto passado, que foi o prazo final para os partidos realizarem suas convenções destinadas a deliberar sobre coligações e escolher candidatos, sendo o dia 15 a última data para o registro de candidaturas ao pleito de prefeito, vice-prefeito e vereadores em todos os municípios do País. O Tribunal Superior Eleitoral informou a existência de 495.403 candidatos registrados em todo o Brasil (16.618 para prefeito e 461.769 para vereador).

Um dos requisitos para que esse registro possibilite que o candidato prossiga no pleito eleitoral é não estar incurso em nenhum dos casos de inelegibilidade dispostos na Lei Complementar nº 64/90, com a redação dada pela Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como a Lei da Ficha Limpa.

A Lei da Ficha Limpa, que teve sua constitucionalidade amplamente debatida perante o Supremo Tribunal Federal, elenca como uma das condições que causa a inelegibilidade, pelo prazo de 8 anos, o fato de haver condenação com trânsito em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado pela prática de determinados crimes (art. 1º, I, “e”, da LC nº 64/90).

A legislação, entretanto, deixa dúvida quanto ao que se pode considerar decisão proferida por órgão judicial colegiado.

No Brasil há três tipos de órgão colegiado de contorno judicial: (1) câmara/turma/grupo de câmaras/turmas/órgão especial/tribunal pleno dos tribunais de segundo grau e das cortes superiores; (2) colegiado para o julgamento no primeiro grau nos casos de envolvimento de organização criminosa, para fins de proteção da integridade física dos magistrados (Lei nº 12.694/2012); e (3) Tribunal do Júri.

Examinando-se o teor do art. 1º, I, “e”, da Lei Complementar nº 64/90, pode-se, então, dizer que o julgamento proferido pelo Tribunal do Júri, em primeiro grau, é suficiente para resultar na inelegibilidade, já que se trata de decisão colegiada exarada em processo judicial. Esse, aliás, é o atual entendimento prevalecente do Tribunal Superior Eleitoral[1] e de inúmeros doutrinadores.

Ousa-se, no entanto, discordar.

Ainda que se convirja quanto à natureza colegiada e judicial da decisão prolatada pelo Tribunal do Júri, admitir que a condenação oriunda do Júri Popular, sem apreciação do Tribunal de Apelação respectivo quanto à inexistência de motivos que justifiquem nova submissão do condenado a outro julgamento, resume-se à utilização inadequada da interpretação literal da lei.

É certo que a decisão dos Jurados tem soberania constitucional, sendo descabida reforma por parte do Tribunal de segundo grau, cuja atuação cinge-se a analisar se: (i) a deliberação Popular deu-se em processo eivado de nulidade; (ii) a sentença proferida pelo Juiz-Presidente contrariou lei expressa ou a decisão do Júri; (iii) existiu erro ou injustiça na dosimetria da pena; e (iv) a decisão dos Jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, do CPP).

Vale dizer, nesse passo, que o Tribunal de segundo grau não examina a culpabilidade do réu, pois não lhe cabe reformar a decisão absolvendo ou condenando o acusado mediante revolvimento dos fatos e das provas produzidas no bojo do processo, limitando sua atuação em determinar, ou não, a submissão do pronunciado a novo julgamento, caso presente uma das hipóteses acima mencionadas.

Tal argumento, ainda que relevante para se considerar que basta a condenação emanada do Júri Popular para gerar a inelegibilidade, não se coaduna com a razão da norma em comento, cujo teor – entende-se – é de que a condenação apta a retirar o direito de ser votado é somente aquela que foi apreciada/revisada por órgão colegiado formado por magistrados que pertencem aos quadros do Poder Judiciário e não de juízes meramente leigos, que julgam desvinculados do Direito e influenciados pela emoção, tendo em vista o melhor desempenho teatral por parte da defesa e da acusação.

Por mais grave que seja a prática dos delitos dolosos contra a vida – bem maior a ser protegido – há que se destacar que muitos homicídios são passionais e praticados em razão de sentimentos descontrolados, relâmpagos e de curto interstício que nenhum de nós está escape de sucumbir. Esse, aliás, é um dos motivos que parece alimentar a manutenção do Tribunal do Júri no ordenamento jurídico pátrio.

Assim, para fins de inelegibilidade da pessoa condenada perante o Tribunal do Júri, ou há que se aguardar a definitividade da sentença proferida no primeiro grau, ou há que se aguardar que o Tribunal de segundo grau confirme que o julgamento pelo Júri Popular e que a decisão prolatada pelo Conselho de Sentença sejam oriundos de procedimento no qual tenha se observado o devido processo legal e com apoio, ainda que mínimo, na prova contida no contexto probatório.

Ressalte-se que nem mesmo a comunidade jurídica que defende a execução imediata da pena após esgotadas as vias ordinárias entende possível que se dê início ao cumprimento da sanção em decorrência do julgamento emanado pelo Tribunal do Júri, sem a confirmação pelo Tribunal de segundo grau.

Não há como se furtar ao paralelismo que, ademais, pode-se afirmar foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADCs nºs 29 e 30 e ADI nº 4.578, que atestou a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, e do HC nº 126.292, que admitiu a execução da pena a partir da finalização da apreciação do processo-crime por órgão colegiado no Tribunal de segundo grau ou no Tribunal originário.

Não obstante, tramita perante o Congresso Nacional projeto de lei incluindo a opção referente ao julgamento pelo Tribunal do Júri como causa expressa de inelegibilidade.

Equivocado, data vênia, o conteúdo normativo de referido projeto…


NOTAS

[1] A inelegibilidade do art. 1º, I, e, 9, da LC 64/90 incide nas hipóteses de condenação criminal emanada do Tribunal do Júri, o qual constitui órgão colegiado soberano, integrante do Poder Judiciário. Precedentes: REspe nº 611-03/RS, DJE 13.8.2013 e REspe nº 158-04/MG, PSESS 23.10.2012)” (RO nº 2634-49.204, rel. Min. João Otávio de Noronha, acórdão de 11/11/2014, DJe 11/11/2014).

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Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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