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A ameaça do EI e a lei antiterrorismo: o Brasil não está pronto


Por Fernanda Ravazzano


Na semana passada a ABIN confirmou que as ameaças proferidas pelo terrorista francês Maxime Hauchad, integrante do Estado Islâmico (EI), apresentadas nas redes sociais em novembro do ano passado, a respeito de um suposto ataque ao Brasil, eram verdadeiras (veja aqui). Sim, nosso país estaria na lista dos próximos alvos da célula terrorista. A pergunta que nos fazemos agora é: estamos preparados? Nossa legislação é madura o suficiente para enfrentar, ao menos, no campo teórico tal problema?

Iniciemos tal análise sob o viés legal: deixemos de lado, neste momento, a discussão acerca do caráter simbólico da legislação, da sua constatada inabilidade para prevenir crimes, pois, como já resta exaustivamente discutido, ninguém comete ou deixa de cometer um delito somente em razão da existência de um texto normativo que prevê penas mais severas para sua conduta.

Os sujeitos cometem delitos pelos mais variados motivos e, certamente, quando nos referimos a ataques terroristas, não podemos sequer afirmar que eles perderiam tempo analisando qualquer legislação para repensar suas condutas. Seria demasiadamente infantil entender dessa forma.

Não obstante, em 17 de março, com a publicação na edição extra do Diário Oficial, entrou em vigor a “Lei Antiterrorismo” – Lei nº 13.260/16 (na íntegra aqui)– que definiria, enfim, o que vem a ser terrorismo[1], estabelecendo ainda punição para o seu financiamento, bem como trazendo dispositivos sobre investigação e aspectos processuais atinentes ao delito.

O projeto de lei 101/2015 foi alvo de severas críticas por parte da comunidade internacional, como a ONU e a Anistia Internacional (veja aqui), por trazer tipos penais amplos, impossibilitando concretamente sua aplicação, permitindo, inclusive, que manifestações sociais pudessem ser consideradas como atos terroristas. A redação final foi aprovada com 08 (oito) vetos, em sua maioria por considerar que havia clara afronta aos princípios da proporcionalidade, culpabilidade e legalidade.

Iremos nos deter, obviamente, à redação aprovada. A questão que emerge é: o tipo previsto no artigo 2° da lei em comento é suficiente, de fato, para definir o que vem a ser crime de terrorismo? Não. Vejamos:

Art. 2o  O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

Ao determinar que o crime de terrorismo corresponde às práticas dos atos descritos na lei – parágrafos do artigo 2° – por “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião” o tipo não engloba diversas possibilidades. Não há previsão para ataques homofóbicos, por exemplo. Não há previsão para condutas pautadas apenas na intenção financeira, de perceber lucro.

As falhas da legislação seguem quando visualizamos os atos de terrorismo em si. Dispõe o parágrafo 1° inciso IV, primeira parte:

“§ 1o  São atos de terrorismo:

[…]

IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação

Insta indagar: a “tomada” de páginas de sites configuraria então, ato de terrorismo, quando sujeito o fizesse por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor etnia e religião? Não haveria um contrassenso com as razões do veto do artigo 4°, tendo em vista que não foi aprovada a redação, justamente por se tratar de violação à liberdade de expressão, mesmo o mencionado dispositivo objetivando punir a apologia a atos de terrorismo? Parece-me que sim.

Seguindo com a análise da lei, causa espanto ainda a desproporcionalidade entre as condutas descritas nos tipos e as penas determinadas. Desde o questionamento apontado acima, em que teríamos a mesma pena de 12 a 30 anos (pena correspondente ao homicídio qualificado) até a sempre questionada e polêmica punição de atos preparatórios, com pena igual a do ato de terrorismo, reduzida, entretanto, de ¼ à metade.

Sem melhor sorte o artigo 5° que pune os atos preparatórios traz a seguinte redação: “Art. 5o  Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito”. Ora, trata-se de redação aberta, que não nos permite com segurança afirmar o que viria a ser tal figura delitiva descrita no caput, com penas igualmente severas. Quais seriam os atos preparatórios? Como poderíamos atestar o “propósito inequívoco”, sobretudo quando punimos no artigo 2° o controle de página da internet com pena idêntica a do sujeito que promove ataque com uso de bombas ou biológico. É flagrante a desproporcionalidade e a incoerência do discurso.

No artigo 6° temos punições mais severas ao financiamento ao terrorismo que os atos terroristas em si, com pena mínima de 15 (quinze) anos, e pena máxima de 30 (trinta) anos.

Com relação às medidas de investigação e instrução processual, a mencionada lei não traz novidades, remetendo tais mecanismos aos já previstos na lei 12.850/13 – Lei de Crime Organizado. Destaca-se, todavia, que os poucos artigos que preveem medidas processuais na mencionada lei, especificamente nos artigos 12 a 15, versam sobre medidas assecuratórias que recairão em bens e valores que podem ser empregados para financiar o terrorismo ou advindos do lucro deste. Não houve previsão de prisão especial, em descompasso com a legislação estrangeira. Este sim seria um tema essencial para compor a lei, mas que estranhamente não se faz presente, havendo apenas a preocupação do Estado brasileiro com o aspecto financeiro.

Faltou ousadia na lei, no nosso país. Se são questionadas as legislações americanas e europeias no combate ao terrorismo por preverem prisões especiais, inversão do ônus da prova, condutas descritas com riqueza de detalhes, nossa lei surge atrasada e fraca. Não foi capaz de satisfazer nem os minimalistas, ao pecar no excesso das penas em determinadas figuras e previsões de condutas simples como atentados terroristas, violando o direito à livre manifestação, tampouco atendeu aos anseios da corrente que defende a máxima intervenção do Direito Penal, uma vez que não prevê condutas que podem configurar atentados terroristas e, principalmente, não avançou em aspectos práticos como a prisão e a investigação.

Não, não podemos afirmar que a lei foi equilibrada, construída no meio termo entre as demandas da mínima intervenção do Direito Penal e sua atuação máxima. A lei não passa de um remedo atrasado, de um sujeito que se perde em uma estrada entre algo que não corresponde à discussão teórica e que se afasta do problema prático. Enfim, se realmente a função da prevenção geral negativa da pena existisse, a Lei Antiterrorismo certamente não conseguiria atingir seu objetivo.


NOTAS

[1] Malgrado a própria lei assevere se tratar de uma “reformulação” da tipificação de terrorismo. Como sabido, a Lei 7170/83 em seu artigo 20 terminou por não tipificar o crime de terrorismo ao prever em sua redação que: “Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos”. Assim sendo, ao trazer a conjunção “ou” ao invés de “e”, o mencionado dispositivo legal afirmou que as condutas descritas não correspondiam a atos de terrorismo. Por tal razão, somente agora em 2016 temos uma lei tipificando terrorismo no Brasil.

_Colunistas-Fernanda

Fernanda Ravazzano

Advogada (BA) e Professora

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