ArtigosExecução Penal

Calabouços, porões e cativeiros: o crime de tortura sob uma perspectiva crítica

Calabouços, porões e cativeiros: o crime de tortura sob uma perspectiva crítica

É uma barbárie consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a confissão do crime, quer para esclarecer as contradições em que caiu, quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, mas do qual poderia ser culpado, quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia. (Cesare Beccaria)

A simples menção ao termo “tortura” nos dá a sensação de envenenamento. O ar fica pesado, lembra o chumbo. A luz enfraquece, despertando sombras e criaturas malignas que moram nela, trazendo à nossa memória episódios mórbidos da história de nosso país. Envergonha. Traz medo.

A “besta-fera” aqui tratada veio escondida para o Brasil nos porões das caravelas, afinal de contas, a tortura foi utilizada pelos nossos colonizadores de além-mar para obter confissões. Com o passar do tempo, tal prática nefasta foi direcionada para dominar, através da violência, as populações indígenas e os escravos.

Assim seguiu nossa história, forjada com sangue, morte e covardia.

A tortura em solo brasileiro foi tolerada durante séculos sob o pretexto de manutenção da ordem. Apenas no ano de 1824 com a primeira Constituição Federal ela ganhou ares de ilegalidade, mas não nos enganemos: era proibida apenas contra cidadãos livres, sendo tolerada paternalmente pelo governo quando praticada em desfavor das populações escravizadas. 

Com o advento do chamado “Estado Novo” – regime ditatorial encabeçado pelo então presidente Getúlio Vargas e que se estabeleceu entre os anos de 1937 a 1945 – foi criado o chamado “Estado Policial”. Esse termo se referia ao Estado de exceção, onde as liberdades e garantias individuais foram pulverizadas através de medidas governamentais de opressão, ocasião em que a tortura foi um instrumento eficaz utilizado para obter “provas”, intimidar lideranças e sufocar revoluções populares. Para garantir o sucesso da “mão de ferro estatal” a imprensa foi amordaçada para que informações referentes à violência desmedida perpetrada pelo governo em todas as esferas não chegassem ao conhecimento da população como um todo, garantindo uma espécie de estabilidade institucional baseada na ignorância da opinião pública. 

O tempo passou e o regime militar – 1964 a 1985 – cuidou para que a tortura continuasse a ser utilizada como uma poderosa arma contra os “subversivos”, sobretudo nos chamados “Anos de Chumbo” (período que se inicia com a implementação do Ato Institucional número 5 e se encerra ao final do governo Médici, em 1974). Essa época é tida pelos historiadores como a de maior repressão política, onde brasileiros que divergiam ideologicamente do governo eram encarcerados e depois torturados até a morte. Muitos deles não tiveram nem mesmo o direito a um enterro digno, já que seus restos mortais nunca foram encontrados. 

Apenas com a Constituição Cidadã de 1988, sob os auspícios da redemocratização do Brasil, é que a prática da tortura começou a ser tratada como deveria: um instrumento a ser marginalizado e se possível, banido definitivamente de nossas terras. Diversas passagens do texto constitucional (art. 5º, III, XLIX e XLIII v. g.) trazem em seu bojo a garantia de que ninguém será submetido a tortura, sobretudo se submetido à prisão, categorizando a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. 

É certo que nosso Código Penal já havia tratado do tema em algumas passagens, assim como outros diplomas legais. O art. 61, II, “d” do código mencionado supra registra a tortura como uma circunstância agravante, assim como o art. 121, §2º, III do mesmo código a descreve como uma qualificadora; o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90 – fala da tortura de forma bastante genérica e a Lei dos Crimes Hediondos – lei 8.072/90 a equiparou aos crimes hediondos.

Dessa forma, ficava cada vez mais óbvio que diante da gravidade do tema uma lei específica precisava ser editada. Além disso, o Brasil era signatário de diversos tratados e convenções internacionais referentes à proteção dos direitos humanos e precisava dar uma resposta coerente à comunidade internacional. Foi sob a égide de todos esses acontecimentos que no dia 7 de abril de 1997 foi criada uma legislação específica para combate da tortura: nascia a Lei 9.455/97.

A inauguração dessas disposições legais trouxe estabilidade e segurança ao nosso arcabouço jurídico no que diz respeito à definição da prática de tortura como crime, detalhando especificamente os atos concretizadores da tortura, seus agentes e as consequências punitivas atribuídas ao(s) torturador(es).

Agora amparados por um supedâneo legal condizente com a magnitude desse crime, podemos caminhar num solo mais firme em busca de manter nossa sociedade estável e com um mínimo de paz para o seu desenvolvimento natural. 

Seja praticada nas masmorras dos períodos mais escuros da nossa história, num cativeiro de um sequestrador ou na cela de uma prisão, a tortura deve ser punida com sanções legais enérgicas e acima de tudo, proporcionais. 

Curioso…este artigo teve início com um pensamento de Cesare Beccaria e me vejo agora na obrigação de modestamente me socorrer mais uma vez do ilustre jurista para terminá-lo de forma digna. Ele dizia, com excepcional tirocínio:

(A tortura) é o meio mais seguro de absolver os criminosos robustos e condenar os fracos inocentes.

De fato, não me resta outra alternativa viável a não ser oferecer minha total rendição a esse pensamento. 


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo