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Dever objetivo de cuidado e o dever de informar-se

Dever objetivo de cuidado e o dever de informar-se

Dando continuidade ao tema proposto nesta coluna na semana passada, analise-se a seguinte questão: quais as diferenças nos fundamentos de punibilidade dos delitos cuja sanção recai sobre a quebra do dever geral de cuidado (tipo de injusto imprudente) daqueles cuja responsabilização se volta para o resultado lesivo originado pela não observação do dever de informar-se (tipo de injusto de omissão imprópria)?

Primeiro é preciso clarear os conteúdos da questão. Nos crimes imprudentes, o fundamento de punibilidade se origina da quebra do dever objetivo de cuidado.

O primeiro elemento da culpa é a consciência da violação de um dever objetivo de cuidado ou, na linguagem da imputação objetiva, o autor deve estar ciente de que sua conduta cria um risco proibido (MARTINELLI, 2017:458).

Isso significa que o fundamental pressuposto de punibilidade nos delitos imprudentes, no que toca o desvalor da ação, não é a conduta em si, mas o modo como esta foi conduzida – de forma negligente, imprudente ou imperita.

O condutor do veículo que, com excesso de velocidade e sonolento atropela e mata pedestre que atravessava a rua no local correto, não será apenado em virtude de ter praticado uma conduta em si ilícita, mas porque realizou uma ação que, embora lícita abstratamente, do modo como foi realizada (imprudência) colocou em risco determinados bens jurídicos, sendo possível afirmar a realização deste risco no resultado (morte do pedestre).

No caso dos delitos omissivos impróprios, a ausência de uma causalidade naturalística entre a omissão e o resultado lesivo ao bem jurídico é suprida por uma série de elementos lógico-empíricos, admitidos dogmaticamente como legítimos para imputação. Dentre esses, o dever de informar-se, ligado primordialmente a ambientes altamente regulados (ambientes de risco claramente conhecido).

Tomando um exemplo para elucidar: no caso de uma casa de espetáculos sofrer um incêndio devido a problemas elétricos, tendo os donos deixado de se informar sobre medidas de segurança relacionadas a tensão elétrica dos aparelhos a serem utilizados e dos materiais utilizados no revestimento do estabelecimento, a responsabilização penal poderá ser fundamentada nesta omissão.

Não havendo muita dúvida sobre a posição de garante, a principal questão terá que ver com a natureza e o limite do dever de informar-se. A doutrina aponta a percepção de um dever objetivo, relacionado aos riscos inerentes de determinadas atividades.

Significa dizer, no exemplo mencionado, que aquele que pretende utilizar um espaço para entretenimento de um grande número de pessoas deve prever um certo grau (e certos tipos) de risco, entre os quais estaria incluído os inerentes às instalações elétricas.

Assim, a omissão na procura por informações, que leva naturalmente a não se adotarem as medidas necessárias para evitar o resultado lesivo, servirá de apoio para conectar este resultado (morte de diversas pessoas em incêndio causado por problemas na instalação elétrica) aos donos do estabelecimento, ainda que não se possa estabelecer um nexo causal puramente empírico (naturalístico) entre a omissão e o resultado (considerando que, de modo geral, não é possível aferir, nos limites da certeza, que o cumprimento das medidas teria evitado definitivamente o resultado).

Obviamente o exemplo e as explicações aqui fornecidas foram drasticamente resumidas, uma vez que a questão da causalidade na omissão e dos limites do dever de informar-se são significativamente mais amplos do que o apontado.

O que interessa no momento é a questão levantada no início: o que demarca a diferença dos fundamentos de punibilidade entre o dever geral de cautela (dever objetivo de cuidado) e o dever de informar-se para evitar o resultado lesivo (imputação da omissão imprópria)?

Colocando a questão de modo mais elegante, trazendo para o ambiente do direito penal “secundário”, onde a problemática do dever de informação se alia com a do afastamento da tipificação voltada a lesão de bens jurídicos pessoais:

No caso dos tipos que veiculam cominações eticamente neutras, o desconhecimento é imputável a uma violação ao dever de informação, subjacente às atividades reguladas. E, sendo assim, não se mostra tão fácil distinguir a natureza deste dever de informação – cujo descumprimento permite a manutenção do dolo – e aquele outro dever geral de cautelam cuja inobservância enseja responsabilização a título de imprudência. (CRUZ, 2007: 51)

A questão apontada pelo Prof. Flávio traz à tona um conteúdo de política criminal extremamente relevante, desnudando o cerne do problema que se quer apontar.

Se nos voltarmos para o exemplo da casa de espetáculos, quais os fundamentos que permitem a determinação de que os donos deverão ser denunciados com base no tipo de injusto omissivo (com espaço para apreciação da modalidade dolosa – dolo eventual – ensejando uma pena que varia de seis a vinte anos, acrescida de 1/6 a 1/2, ou ainda com penas somadas de acordo com o número de vítimas se a interpretação – que entendo absurda, mas não impossível de ser verificada na jurisprudência – de que haveriam desígnios autônomos no dolo eventual dos donos)?

Não seria razoável tipificar a conduta como exemplo de agir imprudente, afirmando que os donos do estabelecimento conduziam uma atividade lícita, fazendo-o, porém, de modo negligente quando ao seu dever objetivo de cuidado? Não seria esta última possibilidade adequada a leitura do que dispõe o art. 121 § 4º do CP?

Versa o referido dispositivo:

Art. 121. Matar alguém.
(...) §3º Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a três anos.
§4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

Uma vez que o parágrafo quarto faz explícita menção a inobservância de regra técnica de profissão, não seria possível e até mesmo razoável a tipificação da conduta exemplificada como delito imprudente, dando vazão a uma pena de um a três anos, aumentada em 1/3?

Diante da enorme discrepância entre as penas a serem cominadas fica clara a relevância da reflexão aqui provocada. Qual seriam as respostas dogmaticamente plausíveis? Seria legítima a opção por argumentos de política criminal para determinar a modalidade de imputação?

Ligada a estas complexas indagações surgirá uma outra, apontada de modo claro por Alaor Leite (2013:39):

quando deve saber o autor para que o Estado esteja autorizado a esperar uma renúncia categórica do comportamento proibido e puni-lo com pena dolosa completa...?

Note que me ative a um exemplo em que o bem jurídico lesado e o dever de informação ainda são relativamente “simples”. Se levarmos o raciocínio para situações envolvendo o direito penal “secundário”, a complexidade crescerá grandemente. Se introduzirmos a temática da apreciação do erro nestas hipóteses teremos ainda mais elementos sensíveis para análise.

São estas as questões que animam a pesquisa mais recente que venho conduzido e sobre elas pretendo trabalhar em várias das próximas colunas.


REFERÊNCIAS

CRUZ, Flavio Antônio da. O tratamento do erro em um direito penal de bases democráticas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007.

LEITE, Alaor. Domínio do fato ou domínio da posição?: autoria e participação no direito penal brasileiro. Curitiba: Centro de Estudos Professor Dotti, 2016.

MARTINELLI, João Paulo Orsini. Lições fundamentais de direito penal: parte geral / João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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