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Reformas processuais penais no Brasil: olhando para trás e evitando o pesadelo da História

Reformas processuais penais no Brasil: olhando para trás e evitando o pesadelo da História

Na última coluna, sustentei que a ornamentação da tradição processual penal brasileira, vigente até hoje, denuncia a metástase das antigas práticas que sempre buscaram disfarçar o estilo autoritário do discurso punitivo: anular as garantias dos acusados, a partir da proliferação do discurso do medo e da criação de inimigos.

Forjados os contextos e identificadas as personagens que serviram como idealizadoras dos Códigos de Processo Penal italiano e brasileiro, é preciso lançar o olhar, de forma crítica, às reformas e aos projetos que foram pensados e que hoje se pensam. Evitar o pesadelo da História, expressão articulada por LOUIS BEGLEY (2010), é evitar que ela se repita tragicamente.

O Codice Rocco foi revogado em 1988, o que não significou, necessariamente, o afastamento da prática forense das premissas autoritárias lá idealizadas. RENZO ORLANDI, em conferência proferida no seminário “Direitos individuais e processo penal na Itália republicana”, ocorrida em Ferrara, em novembro de 2010, argumentou que a literatura penalística ainda está privada de uma reflexão sobre a história recente do nosso direito processual, mormente frente a uma fase de instabilidade normativa como a atual.

Segundo o professor de Bologna, “não é um grande consolo saber que, já na década de 50 do século passado, lamentava-se o papel marginal da defesa, especialmente na fase instrutória, ou que já se criticava a tutela insuficiente da liberdade pessoal”, dentre outros problemas. FRANCO CORDERO, na década de 60 (no auge de seus trinta e poucos anos, o que demonstrava, por si só, sua genialidade intelectual), já discorria sobre as objeções que seriam feitas contra o sistema acusatório.

“Dirão que não é oportuno subtrair do juiz a iniciativa probatória”, anunciava ele, adiantando as acrobacias mentais que seriam feitas anos depois – e até hoje – a fim de justificarem uma estrutura inquisitória (que, de mais a mais, se sente maculada por ser assim chamada). Cordero fazia resistência à deformação da lógica, mas, àquele momento, não era ouvido. GIANDOMENICO PISAPIA, também na década de 60, disse que entre os diversos instrumentos processuais problemáticos e limitadores da liberdade individual, o que explode é a questão da prisão preventiva.

Até hoje não se aprendeu a distinção conceitual entre prisão preventiva e prisão decorrente da pena. PISAPIA (1965), àquela época, dizia: “a ragione ammoniva S. Agostino che ‘gli uomini torturano per sapere se si deve troturare’” (Santo Agostinho, com razão, advertiu que ‘os homens torturam para descobrirem se devem torturar’”. Não é preciso muito esforço para encampar a mesma realidade no Brasil de hoje: prende-se para descobrir se se deve prender.

Pois bem. Com relação às reformas processuais penais italianas, sugiro ao leitor e à leitora que recorram ao excelente texto de Renzo Orlandi, disponível na obra “Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil”, da editora Empório do Direito. Com relação às reformas brasileiras, sendo a mais notável delas a de 2008 (gestada na década de setenta sob a alcunha de Projeto Frederico Marques), é preciso dizer que apesar delas, pouca coisa mudou – e, apesar das boas intenções dos responsáveis pelas reformas, muita coisa mudou para pior.

Um estudo detalhado das Leis n. 11.689/08, 11.690/08, 11.719/08, que reformularam, respectivamente, o procedimento do Tribunal do Júri, os dispositivos relativos à produção probatória e os procedimentos comuns ordinário e sumário, leva à percepção do retrocesso no caminho de efetivação das garantias processuais previstas no texto constitucional em 1988.

Como exemplo do retrocesso, cite-se a nova redação dada ao artigo 362, que introduziu o instituto da citação por hora certa nos casos em que o oficial de justiça constata que o acusado se oculta para não ser citado, permitindo, nessas situações, que o acusado não seja citado pessoalmente, ou, em outras palavras, possibilitando a existência de processo sem o conhecimento da acusação, com base em critérios subjetivos do oficial de justiça.

Ocorre que “é uma imensa responsabilidade que se deposita nas mãos de um oficial de justiça, eis que se presta a todo tipo de manobra fraudulenta, motivo pelo qual deverá o juiz ter extrema cautela em aceitar uma certidão com esse conteúdo” (LOPES JR., 2014).

As distorções da reforma não param por aí, muitas delas atuando na reprodução e na legitimação de um direito processual penal destinado à contenção de inimigos, mais precisamente, os excluídos. Veja-se a tentativa (frustrada) de adoção de um modelo europeu em que o ofendido participa do processo, na redação do art. 387, IV, que passou a prever a possibilidade de o juiz fixar um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos do ofendido, sem que este participe efetivamente do processo penal.

Veja-se a nova redação do art. 155, que frisa que o juiz formará sua convicção pela (livre) apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão apenas com base nos elementos colhidos durante a fase de investigação. Depreende-se daí a permissão que foi dada ao juiz de fundamentar sua decisão em elementos colhidos sem contraditório e sem defesa ampla e irrestrita. Isso sem falar do art. 156 que, absurdamente, atribuiu poderes instrutórios ao juiz, mesmo antes de haver processo.

O art. 157, na sequência, relativiza o que não deve ser relativizado: a regra constitucional de inadmissibilidade de provas ilícitas. Como bem advertiu o professor JACINTO COUTINHO (2015), “reformas parciais – com boas intenções ou não – tendem a destruir os sistemas (ou quase) se eles não são levados em consideração”.

Daí a necessidade de aprendermos a lição: um processo penal verdadeiramente democrático depende não só de uma reforma legislativa ampla e global (PL 156/2009), mas, principalmente, de uma reforma nas mentalidades, que caminhe evidentemente para um modelo acusatório, sem edições. É preciso coragem para mudar e enfrentar todo um sistema articulado com base no autoritarismo e no gozo pela punição.

O exemplo chileno simboliza que é possível mudar e nos coloca um longo caminho a ser seguido. Quanto mais demorarmos a iniciar o trajeto, mais nos afastaremos de uma verdadeira democracia.

Entre 2000 e 2005, o Chile implementou sua mais significativa reforma processual penal, caminhando definitivamente para um modelo acusatório: viu a implementação da figura do juiz de garantias, de uma etapa intermediária em que se analisa se os elementos colhidos na fase preliminar obedecem à legalidade, cabendo apenas ao Ministério Público a decisão sobre se deve ou não denunciar, e caso o seja, a instrução será eminentemente oral,  com a figura de juízes absolutamente alheios aos elementos colhidos na fase anterior, que tomam conhecimento da acusação no momento da audiência, buscando garantir o máximo de imparcialidade possível.

Eduardo Gallardo, juiz de garantias chileno, em evento realizado em Canela/RS, em outubro deste ano, afirmou que a jurisdição criminal deve ser contramajotirária, no sentido de que não deve querer agradar à opinião pública. Ela não se presta a isso. É inconcebível que existam juízes e tribunais que desconheçam, ou ignorem, ou ambos, a teoria dos direitos fundamentais e os procedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas isso é assunto para uma próxima coluna. Até lá!


REFERÊNCIAS 

BEGLEY, Louis. O caso Dreyfus: Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da história. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Reformas parciais do processo penal: breves apontamentos críticos. Disponível aqui.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

ORLANDI, Renzo. Direitos individuais e processo penal na Itália republicana. In: Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil: anais do Congresso Internacional “Diálogos sobre processo penal entre Brasil e Itália”. Organização de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Leonardo Costa de Pula e Marco Aurélio Nunes da Silveira. Vol. 1. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

PISAPIA, Giandomenico. Orientamenti per una riforma della custodia preventiva nel processo penale. In: Criteri direttivi per una riforma del processo penale. Convegni di Studio Enrico de Nicola . Problemi attuali di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffré Editore: 1965.

Michelle Gironda Cabrera

Advogada (PR) e Professora

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