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Um ano da criminalização da LGBTfobia: entre lacunas e implicações de violência

Um ano da criminalização da LGBTfobia: entre lacunas e implicações de violência

Por Izadora Barbieri e Erika Batalha

A agenda do movimento LGBTQI+ no Brasil esteve, desde do início da década de 80, vinculada a pautas sobre a criminalização da homofobia. Como marcos e representações históricas, podemos pontuar a representatividade do Grupo Gay Bahia, que em 1980 realizou a produção de dossiês sobre assassinatos de homossexuais, ainda, em 1999, a criação do Banco de Dados do Disque Defesa Homossexual no Rio de Janeiro funcionou como uma forma de catalogação desses dados de violência destinada a pessoas LGBTQI+, e também, a realização de pesquisas qualitativas sobre vitimização realizadas nas paradas LGBTQI+ nos anos de 2003, 2004 e 2005. Destaca-se que o tema da parada LGBTQI+ no ano de 2006 teve como tema central “Homofobia é crime: direitos sexuais são direitos humanos”.

Foi também na década de 80 que iniciativas voltadas para a coibição da violência destinada a comunidade LGBTQI+ no âmbito Legislativo e Judiciário ganharam força, como Projetos de Emenda Constitucional para a inclusão da expressão “orientação sexual” no artigo que prevê a proibição de descriminalização por “origem, raça, sexo, cor ou idade” e ainda, iniciativas de mais de 70 municípios e 8 estados que alavancaram e resultaram em legislações que prevêem hoje a criminalização da violência destinada a homossexuais.

Ainda, alguns projetos que propunham a criminalização da homofobia já ganhavam corpo, como o PL 122 de 2006 e o PL 7582 de 2014 que definia os crimes de ódio e intolerância contra pessoas LGBTQI+.

Assim, a partir da ampla trajetória de lutas políticas do movimento LGBTQI+, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 672 que altera a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989 que trata dos crimes de discriminação ou preconceito de orientação sexual e/ou identidade de gênero. No entanto, até o momento não temos a aprovação da lei pelo poder Legislativo. Em razão desse vácuo no atendimento da pauta LGBTQI+ pelo poder legislativo, o caminho encontrado para a conquista de direitos foi via poder judiciário.

Com isso, o Supremo Tribunal Federal conferiu a tipificação penal da conduta de discriminar pessoas LGBTQI+ no dia 13 de junho de 2019, no sentido de estender a interpretação do art. 20 da Lei nº 7.716/1989 (Lei do Racismo), para que esta também seja aplicada no contexto de crimes de ódio destinado a esse grupo.

O Mandado de Injunção (MI) nº 4733 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 que buscaram, em suma, a criminalização da LGBTfobia perante a Suprema Corte, tiveram julgamentos favoráveis e o pleito foi atendido na data supramencionada pelo plenário do STF.

Há exatamente um ano o Supremo Tribunal Federal aprovou por 8 votos a 3 a criminalização da homofobia e da transfobia no Brasil. A partir desta data, condutas preconceituosas contra homossexuais, transexuais, bisexuais, lésbicas, travestis e todas as pessoas que integram a sigla LGBTQI+ tornaram-se crime com pena de um a três anos e multa.

Em que pese, ainda temos muito trabalho pela frente na desconstrução do preconceito, em razão da lei em si não resolver questões estruturais do contexto social, nem conferir conscientização plena para que a sociedade não promova discriminação. A criminalização da LGBTfobia amplia o leque de medidas que permitem coibir a violência contra LGBTQI+, já que confere maior autonomia a esses atores e dá legitimidade para que, quem foi discriminado, possa buscar a defesa do sistema de justiça por ter sido vítima do crime.

A violência destinada a pessoas LGBTQI+ era, no início dos seus estudos, vinculada a idéia de patologia, como se aquele homofóbico possuísse uma disfunção biológica responsável por gerar sentimentos de repulsa e ódio contra a homossexualidade e/ou homossexuais. Essa ideia é ainda hoje difundida dentro do contexto comum, no entanto, cabe destacar que a homofobia é um fenômeno que emerge a partir de uma construção sócio-histórica e cultural, não tendo, portanto, relação com ordem psíquica patológica.

Nesse sentido, Oliveira (2017) discorre:

Sem se prender a aspectos de ordem individual e psicológica, mas contradizendo fortemente as acepções de ordem patologizante, estes estudiosos associaram o fenômeno a situações de ordem social que envolvem discriminação e violência contra pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, e Transgêneros). O foco saiu do caráter psicológico e o conceito passou a ser pensado em uma perspectiva crítica, sendo considerado a partir de uma ponto de vista social (OLIVEIRA, 2017, p.19).

Cabe ainda destacar que o termo homofobia foi associado a violência destinada especificamente a homens gays, tendo em vista a compreensão de que a interpretação do radical Homo seja a derivada do latim, que significa “Homem” e não do grego que quer dizer “semelhante” (JUNQUEIRA, 2007, p. 152). No entanto, é importante salientar a relevância da especificação de alguns termos como lesbofobia, que seria a violência destinada especificamente a lésbicas, assim como também, bifobia e transfobia, no sentido de reconhecimento identitário e inclusão dos variados grupos, afastando também o risco da não compreensão das múltiplas violências existentes.

Pensemos ainda que a violência destinada a pessoas LGBTQI+ não se manifesta apenas na conhecida violência física ou mesmo moral, para além disso, ela possui desdobramentos múltiplos, pois se configura em diferentes nuances a partir de implicações de gênero, raça e cor. A teórica dos estudos críticos de gênero e sexualidade, Berenice Bento, compreende que, o chamado transfeminicídio, que seria o assassinato de mulheres transexuais, e que possui em comum com o feminicídio, o ódio contra o feminino e o desprezo do ser mulher, é um desses desdobramentos.

Assim, para pensarmos ainda esses múltiplos desdobramento da violência destinada a pessoas LGBTQI+, podemos compreender que, embora o transfeminicídio e o feminicídio possuam semelhanças em seu núcleo, existem diferenças nítidas em relação a essas violências. Com isso, a violência contra mulheres cisgênero ocorre em sua grande maioria em casa, praticada por companheiros ou ex companheiros. De contrapartida, as mulheres trans são violentadas em espaços públicos, por desconhecidos.  Nesse sentido, a positivação legal não parece ser suficiente para superar todas as implicações relativas à violência LGBTQI+.

Nessa mesma perspectiva, pensando de forma ainda mais específica a violência LGBTfóbica, Oliveira (2017) compreende que, em relação a violência entre lésbicas e gays, existe direta relação com o gênero da vítima, e ainda, quando se observa os tipos de violências, percebe-se que locais públicos são típicos para o cometimento de violência física contra homens gays, e os espaços domésticos para violência psicológica contra mulheres lésbicas (OLIVEIRA, 2017, p. 92).

Infelizmente, as delegacias que não são especializadas para atender os diferentes tipos de crime no contexto LGBTQI+ não estão totalmente preparadas e muitas vezes o registro da ocorrência é enquadrado como crime comum. Esse fato pode resultar em outros dois  problemas como a subnotificação dos casos, pois muitos LGBTQI+ violentados tem medo de registrar a ocorrência ou sequer conseguem fazê-lo por não disporem do tratamento adequado, e ainda a revitimização, a partir da submissão a constrangimento e discriminação sofrido em órgão policial.

A revitimização, que seria uma espécie de segunda violência sofrida pela vítima no contexto institucional, ocorre por não haver um preparo por parte dos agentes e delegados de polícia para colher o depoimento dessas pessoas, o ideal seria que a oitiva das vítimas fosse realizada de forma a analisar o caso concreto em específico.

Cabe ressaltar que no Distrito Federal foi criado um Protocolo específico para o atendimento de pessoas LGBTQI+ nas delegacias, assim, o chamado Procedimento Operacional Padrão (POP) da Homotransfobia, lançado pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), especifica como deve ser realizado o acolhimento e tratamento da população LGBTQI+ nas delegacias de polícia e outras unidades de atendimento.

O documento foi construído com base na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) referente à criminalização da LGBTfobia. No mesmo caminho, as capitais do Rio de Janeiro e São Paulo possuem a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) que é um órgão público criado para o combate aos crimes de racismo e homofobia, preconceito e intolerância.

Tal iniciativa levanta a reflexão para pensarmos a aplicação de atendimentos especializados a nível nacional, assim, um atendimento específico para a comunidade LGBTQI+ poderia contribuir de forma positiva para o entendimento de cada caso, e para o tratamento adequado de cada violência sofrida. Como não existe um protocolo de atendimento padrão a nível nacional para ser utilizado por órgãos policiais, a população LGBTQI+ fica submetida ao atendimento local das delegacias de polícia de cada Estado que nem sempre possuem uma estratégia de atendimento adequada.

Durante a pandemia o Brasil registrou um aumento de 49% no assassinato de mulheres trans e travestis segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). A partir desses dados, compreendemos que, mesmo com a criminalização da homofobia a violência destinada a esse grupo tem aumentado, nesse sentido, se faz necessário pensarmos as possíveis implicações e falhas que essa positivação apresenta.

Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo apontam que os registros de violência relacionados à população LGBTQI+ aumentaram em 12,69% em 2019 comparado a 2018 e que em 2020 já foram instaurados 44 inquéritos policiais para averiguar crimes de LGBTfobia. No entanto, esses números ainda não correspondem à realidade concreta, motivada pela subnotificação dos casos de violência contra a população LGBTQI+.

Nesse primeiro ano de criminalização da LGBTfobia é possível refletir que ainda é necessário repensar diversos pontos, como investimentos em políticas públicas efetivas para as pessoas LGBTQI+ compreendendo as intersecções implicadas nesse grupo, ainda, a conscientização dos profissionais que atuam em sede policial e judicial podem indicar um passo para uma mudança no cenário de reconhecimento para pessoas LGBTQI+.

Nesse sentido, conforme a teórica Queer, Judith Butler pontua, o reconhecimento possui dupla fronteira, onde se faz necessário que reivindiquemos inteligibilidade e direitos e que também mantenhamos uma relação crítica e transformadora com essas normas (BUTLER, 2003, p.242). Assim, a dramática realidade em que a cada 23 horas morre um LGBTQI+ no Brasil, segundo dados do Grupo Gay da Bahia, demanda por uma mudança efetiva no contexto social e também normativo no que diz respeito a políticas de reconhecimento LGBTQI+.


REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? In: cadernos pagu (21), 2003: pp. 200-160.

______________. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia: Limites e Possibilidades de um Conceito em meio a Disputas. In: Revista Bagoas (1), 2007.

OLIVEIRA, Rayane Dayse da Silva. As diferentes formas de expressão da homofobia e as variações nas vivências de gays e lésbicas de Natal/RN. 2017. 126f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017.


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