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Pra vítima não tem segunda chance

Pra vítima não tem segunda chance

O texto de hoje, seguindo nossa série, tem por título um bordão selecionado dentre vários outros que partilham de um mesmo substrato lógico-argumentativo. Alguns destes, inclusive, têm figurado com certa frequência nas sessões de comentários de nossa coluna.

Assim como a grande maioria do bordões discutidos anteriormente, a frase objeto do texto dessa semana (e as outras frases que expressam o mesmo sentido) apela para o lado emocional do interlocutor, possuindo pouca ou nenhuma base racional e/ou teórica. Também se assemelha a várias das frases de efeito antes abordadas pelo profundo maniqueísmo que expressa, mas destaca-se das demais pela carga de hipocrisia que esconde.

Primeiramente, é importante destacar que o nosso sistema penal, nos moldes atuais, não possui nenhuma preocupação e não dá nenhuma importância à vítima.

No processo penal brasileiro, em se tratando de crimes de ação pública, a vítima será sempre ouvida como testemunha do fato que não possui o grau de isenção necessário para prestar o compromisso de dizer apenas e toda a verdade (ou seja, como informante), e sua real participação estará sempre restrita a, no máximo, autorizar a persecução penal.

Por isso, é apenas natural que qualquer manifestação de ordem prática quanto a temas tratados pelo direito penal, que não tenha por objetivo propor alguma ordem de mudança estrutural ao sistema, esteja centrada no sujeito que realmente importa a esse sistema, ou seja, aquele acusado de cometer um crime.

Com isso, não se pretende afirmar que o sistema atual é bom ou adequado, mas tão somente ressaltar que é com essa realidade que temos que lidar, certa ou errada.

Com esse retrato, revela-se que o clamor pela preocupação com a vítima é proveniente de pessoas que não voltam seu foco ao sistema ou ao direito penal por um viés prático.

É certo que tal fato não é suficiente para desqualificar tal clamor, apenas demonstra a necessidade de afastá-lo da discussão estritamente jurídico-penal. Contudo, não é esse o único ponto digno de nota – e crítica – no que tange à análise de nossa frase de efeito da semana.

Um ponto relevante é a simples inverossimilhança da frase em si. A questão aqui é que, via de regra, a vítima tem sim uma segunda chance. Segundo dados do Infopen, somente 10% da população carcerária brasileira foi condenada por homicídio, e outros 3% por latrocínio.

Embora se possa argumentar que são números altos e preocupantes, o que se quer revelar é que em pelo menos 87% dos crimes em que se comprovou a autoria – que são os que interessam a nossa análise, uma vez que a frase de efeito em questão geralmente se contrapõe a manifestações em defesa dos direitos básicos das pessoas previamente identificadas como “bandidos” – não há vítima ou a vítima pode seguir sua vida após o crime, mesmo que lhe reste alguma consequência negativa do fato.

Quase um terço das pessoas presas no Brasil cumpre pena por tráfico de drogas, um crime, em si, sem vítima. Outros 13% foram condenados por furto, crime em que, se permanece algum dano à vítima (uma vez que na maioria dos casos em que o autor é identificado, os objetos furtados são devolvidos), este é unicamente patrimonial.

Mais um quarto da população carcerária cometeu roubo, que embora seja um crime mais grave, em boa parte dos casos não impõe sofrimento físico à vítima.

Tem-se assim que pouco menos de dois terços dos crimes cuja autoria é reconhecida no Brasil têm consequências leves ou inexistentes para suas vítimas, revelando que a inexistência de “segunda chance” para estas não passa de uma falácia.

Outra questão que deve ser considerada é a inexistência de relação direta entre a punição do criminoso e o surgimento de uma “segunda chance” para a vítima.

Destaca-se, nesse ponto, que, de um modo geral, nos crimes que mais comumente ensejam a utilização do jargão sobre o qual se concentra nossa reflexão, o momento do delito é o único em que há uma real interação entre a vítima e o autor.

Deste modo, o único benefício que pode haver para a vítima com a punição do criminoso é a satisfação de seu sentimento de vingança.

Conforme já se expôs em textos anteriores de nossa série, este sentimento é muitas vezes equiparado ao conceito de justiça, mas um estudo aprofundado da criminologia, da teoria do delito e da teoria da pena revelam que esse retributivismo baseado em pagar o mal com mal parte de pressupostos ultrapassados e incabíveis em uma sociedade que se pretende verdadeiramente democrática.

Deve-se atentar para o fato de que, nos crimes mais leves, como o furto, a simples identificação do suspeito da prática de um delito já é suficiente para reparar o dano causado à vítima – por exemplo, ao se perceber que o autor de um furto está se evadindo do local em que o delito ocorreu com os objetos furtados e prendê-lo, os objetos são recuperados imediatamente.

Nos casos em que não se verifica essa suficiência (como em um furto em que um portão é quebrado, restando tal prejuízo para a vítima), é comum que a desproporção possa ser compensada com uma simples indenização financeira. Resta evidente, assim a indiferença concreta da punição do criminoso para a vítima.

Porém, mesmo nos crimes mais graves, em que os danos causados à vítima não são tão facilmente reversíveis, como em estupros ou mesmo homicídios, não se demonstra uma utilidade da punição para a vítima. Condenar o assassino à morte não devolverá a vida da pessoa que ele tirou da convivência da família e dos amigos.

Castrar quimicamente o estuprador não vai devolver a dignidade, a autoestima, a confiança e a paz à sua vítima. A punição serve, somente, a criar a sensação de que aquele criminoso especificamente não repetirá seus atos com outras vítimas.

Nesse ponto, revela-se a questão final em nossa análise. A frase sobre a qual nos debruçamos nessa oportunidade é vazia porque, na verdade, a vítima em concreto de qualquer que seja o crime sobre o qual se discute não é motivo de preocupação verdadeira.

O sofrimento da vítima só é relevante na medida em que serve como justificativa para a manifestação do ímpeto punitivo que perpassa nossa sociedade.

Não fosse esse o caso, o clamor desses tão assíduos defensores das vítimas não seria pelo recrudescimento – inútil para elas – das penas aplicadas aos criminosos, mas pela criação e pelo fortalecimento de projetos de acolhimento e apoio às vítimas.

Não fosse esse o caso, o clamor não seria pela pena de morte, mas pela implementação da justiça restaurativa, que permite que a vítima tenha voz no processo criminal, que busca lhe possibilitar, ainda que de forma limitada, uma forma de superação do mal que lhe foi causado.

As pessoas que se utilizam de frases como “pra vítima não tem segunda chance”, “pra vítima ninguém liga”, “a vítima ninguém defende”, “não existe o mesmo empenho para defender as vítimas que para defender os bandidos”, entre tantas outras, não pleiteia, em geral, nenhuma mudança no sistema penal ou mesmo no funcionamento da sociedade que traga algum benefício real para as vítimas, apenas se apropria de suas experiências negativas para justificar suas próprias concepções político-criminais – sempre punitivistas.

Não há preocupação genuína, mas somente instrumentalização de uma posição de sofrimento presumido das vítimas em prol de um projeto que não passou, necessariamente, pelo crivo das próprias vítimas (e digo isso como vítima de injúrias, ameaças, assaltos e estupros – sim, no plural –, e como filha de uma vítima de homicídio – ainda que culposo).

É por isso, por sua hipocrisia intrínseca e profunda, que a frase que intitula esse texto merece um lugar em nossa coletânea de clichês vazios do senso-comum criminal. Porque, no final das contas, ninguém, nem os “defensores de bandidos” e muito menos os “cidadãos de bem”, liga pra vítima.


Assina este texto: Susan Squair

Iuris Trivium

Grupo de simulação, pesquisa e extensão em Tribunal do Júri (UFPR)

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