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Precisamos falar sobre imparcialidade no processo penal

Precisamos falar sobre imparcialidade no processo penal

Sei que as últimas notícias trouxeram uma série de questionamentos por parte da sociedade como um todo e para o meio jurídico, obviamente. Mas penso que o fundamental diante da gravidade do noticiado, aguardada sua apuração, é refletir acerca da garantia constitucional e também direito humano imparcialidade do julgador, e do por que da sua existência e da necessidade premente da sua garantia, aplicação e eficácia.

Mas para isso é preciso refletir também acerca dos sistemas processuais penais e, obviamente, daquele que se coaduna com a nossa Constituição Federal, que por instaurar um Estado democrático de direito, só poderia ser acusatório, mas que cede evidentemente a nossa tradição, que é de uma matriz inquisitorial.

De acordo com Lopes Júnior (2010), os sistemas processuais inquisitivo e acusatório são reflexo da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado da época, sendo o seu ponto nevrálgico a identificação de seu núcleo, ou seja, do seu princípio informador, pois é ele quem vai definir se o sistema é inquisitório ou acusatório, e não os elementos acessórios, como, por exemplo: a oralidade, publicidade, separação das atividades, entre outros.

E em considerando que a finalidade do processo é buscar a reconstituição de um fato histórico, a gestão da prova é erigida à espinha dorsal do processo penal, estruturando e fundando o sistema a partir de dois princípios informadores, os quais na visão de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho seria o princípio dispositivo, traduzido acima em acusatório e o inquisitivo.

Um processo de partes, sem privilégios, onde a gestão da prova seja de exclusiva competência destas mesmas partes, com intuito, inclusive, de assegurar-se a garantia da imparcialidade ao juízo, constitui o cerne do princípio acusatório ou dispositivo. Por outro lado, o princípio inquisitivo, que rege e fornece utilidade ao sistema inquisitório, enuncia a concentração de poderes nas mãos do órgão julgador, que passa a deter a gestão da prova e tende a considerar o réu como mero objeto de investigação durante a busca da verdade que se dá no processo (CASARA e MELCHIOR, 2013).

Para os mesmos autores, o que vale asseverar é que o princípio inquisitivo surgiu da necessidade histórica de concentração de poder, de fortalecimento do Estado, revelando-se em uma manifestação de força deste em oposição às tentativas de construção dialética da decisão justa, remetendo, portanto, a um modelo de organização sistêmica concentradora do poder, transformando, assim, o julgador em órgão parcial, mais precisamente em um órgão de segurança pública (CASARA e MELCHIOR, 2013).

De acordo com Prado (2006, p. 55),

o sistema processual está contido no sistema judiciário, por sua vez espécie do sistema constitucional, derivado do sistema político, implementando-se deste modo um complexo de relações sistêmicas que metaforicamente pode ser desenhado como de círculos concêntricos.

E o sistema acusatório significaria um processo de partes, havendo uma clara distinção entre as atividades de acusar e julgar, onde a iniciativa probatória cumpriria às partes, mantendo-se o juiz como um terceiro imparcial alheio ao labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova.

Tal sistema trataria igualitariamente às partes, através de procedimento, em regra, oral, garantida a plena publicidade, o contraditório e a possibilidade de resistência, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional, atendendo a critérios de segurança jurídica e social da coisa julgada, reconhecida a possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição (LOPES JUNIOR, 2010).

De acordo com Casara e Melchior (2013), aponta-se o direito anglo-saxão como o exemplo de modelo acusatório que mais se aproxima da pureza conceitual desse sistema, estando ele dividido em: Inquisitorial System e Adversarial System.

Ainda com os autores, a doutrina anglo-saxônica elenca as seguintes exigências à concretização do sistema acusatório: a investigação preliminar estaria vedada à Agência Judicial; a iniciativa processual é conferida a um ator processual, distinto do órgão julgador, que passa a deter a função de acusar; cabe ao acusador provar os fatos imputados ao acusado, bem como a sua culpabilidade; e o acusado tem o direito de produzir as provas do seu interesse e de contradizer as provas produzidas em seu desfavor.

Mas o que isso tem haver com imparcialidade? Tudo! O direito a uma decisão judicial ditada por um órgão judicial monocrático ou coletivo imparciais encontra guarida não apenas na legislação de direito interno, mas, também, na de direito internacional, com previsão em diversos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, inclusive, ratificados pelo Brasil.

E esse direito, por certo, encontra-se umbilicalmente ligado ao sistema processual penal adotado por determinado Estado. Veja-se, quando o Estado toma para si o monopólio do exercício da violência legítima, estabelecendo e estruturando um sistema judicial, com papeis diferenciados aos seus atores e integrantes, não o faz por acaso, mas, sim, por que tem por intuito equilibrar a balança que representa a justiça, buscando alcançar uma decisão justa e não contaminada que tenha por intuito resolver um conflito que lhe é posto e que representa uma demanda para a sociedade.

Isso é uma conquista civilizatória! Nega-se a vingança privada e a lei do mais forte e garante-se a toda a sociedade e aos seus indivíduos uma decisão equânime.

De acordo com GIACOMOLLI (2014), a imparcialidade se constitui em um componente essencial da atividade jurisdicional tanto como valor ou qualidade estruturante da função jurisdicional. A imparcialidade tem por função evitar a arbitrariedade e a contaminação subjetiva do julgador, podendo-se falar em imparcialidade subjetiva e objetiva.

Vejamos como GIACOMOLLI (2014) leciona:

(…) em uma aproximação subjetiva, a imparcialidade identifica a inexistência de prejuízos (“pré-juízos”), de preconceitos inautênticos ou indevidamente adquiridos que possam viciar o julgamento, traduzindo-se na inexistência de uma convicção pessoal prévia acerca do objeto do julgamento, de uma opinião sobre o caso penal, ou sobre os sujeitos e partes envolvidos, um tomar partido antecipado sobre determinado problema criminal, ou um aderir às razões de uma das partes antes do momento processual estabelecido. Em suma, ter interesse pessoal no caso. Assim, presume-se a imparcialidade subjetiva do julgador. Contudo, desde uma perspectiva objetiva, não basta ao julgador prestar a tutela jurisdicional efetiva, “fazer justiça”, mas faz-se necessário mostrar à sociedade e à comunidade jurídica que a “Justiça” está sendo feita, isto é, como afirmado pelo TEDH no Caso Piersack vs. Bélgica de 1982, há que ser verificado se o magistrado oferece garantias suficientes de exclusão de qualquer dúvida razoável sobre sua imparcialidade, devendo oferecer confiança e segurança acerca da imparcialidade.(…).

Costumo dizer que as garantias não existem por existirem, há que se perquirir sempre pela sua historicidade e do por que se encontram inseridas no corpo legal, há sempre uma funcionalidade a ser atingida.

Entretanto, na esteira do que lecionam Casara e Melchior (2013), não podemos deixar de considerar que a história do processo penal é também a dos mecanismos de controle sobre a liberdade dos indivíduos e da confiança, ou não, no poder penal. E conforme bem acentuam os referidos autores, o processo penal, como todo produto humano, está condicionado por uma tradição e, nesse ponto, não há como se dissociar da sociedade brasileira e, consequentemente, do processo penal, um caldo cultural autoritário, em que pese o projeto democrático-constitucional instaurado em 1988.

O autoritarismo sempre esteve presente na história brasileira, e, segundo Casara e Melchior (2013), embora as mudanças operadas, a sociedade vem reproduzindo esses caracteres, pois não se verificou uma ruptura histórica capaz de alterá-los. E essa ausência de rupturas, segundo os mesmos autores, encontra reflexos no campo processual penal.

A permanência do Código de Processo Penal de 1941, em que pese às reformas pontuais sofridas, dá conta disso, inclusive quando se verifica que para além da naturalização de práticas inquisitivas, estas mesmas reformas operam ora em sentido democrático, ora em sentido inquisitorial (exemplo se vê com o artigo 156 do CPP, alterado pela Lei nº 11.690 de 2008).

No entanto, entendemos que a visualização do processo penal como instrumento tendente a limitar a expansão do poder punitivo do Estado, através da delimitação de um mínimo de garantias necessárias a proteção da pessoa humana, entre elas a da imparcialidade, é a única ótica possível dentro da perspectiva de adoção do Estado de Direito.

Mais uma vez, portanto, salientamos as lições de Giacomolli (2014, p. 79) nesse sentido:

Assim, o devido processo é o constitucional e convencional, o justo processo, muito além da normatividade ordinária. É aquele capaz de assegurar a proteção dos direitos humanos no plano concreto, por meio de uma teia de garantias forjadas em sua historicidade, na complexidade normativa doméstica e internacional.

E é por isso que a defesa das garantias e dos direitos humanos fundamentais, assim como a imparcialidade, deve ser cobrada por todos e todas, do contrário, só nos resta à barbárie e a lei do mais forte.


REFERÊNCIAS

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. v. 1 e 2.

CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro. Dogmática e Crítica: Conceitos Fundamentais. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014.


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Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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