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O julgamento de O. J. Simpson: spoiler, linhas e entrelinhas

Não é. Mas, para muitas pessoas, o spoiler deveria ser um fato típico. Leia-se: é fato tão grave que deveria ser previsto na lei como criminoso. E é exatamente o que passo a fazer. Spoiler. É que o primeiro tema dessa coluna é a série The People v. O. J. Simpson: American Crime Story, sobre a qual contarei detalhes e, inclusive, o final.

Nesse caso, porém, há causa excludente de ilicitude que torna a conduta permitida: a série é baseada em fatos reais por todos conhecidos. Todos, portanto, já conhecem o desenrolar dos fatos – o que, registre-se, em nada retira a graça do lançamento da Netflix.

Confesso que não sabia se era a Netflix ou o Netflix. Após intensa pesquisa doutrinária e jurisprudencial, descobri o sexo: é mulher. Por falar em mulher, esse é o segundo tema da coluna, numa atrasada homenagem ao dia 08 de março.

O que tem a nova série do Netflix a ver com o Dia Internacional da Mulher?

Orenthal James Simpson era um dos mais famosos jogadores de futebol americano, além de haver atuado em programas de televisão e filmes norte-americanos. Foi acusado – após um histórico de agressões – de, na noite de 12 de junho de 1994, ter cruelmente matado sua ex-esposa e um rapaz que a acompanhava, com facadas no rosto e no pescoço.

A polícia de Los Angeles encontrou vestígios de sangue no carro e na casa de O. J. Simpson e, após a realização de perícias, se identificou o DNA de três distintas pessoas: as duas vítimas e o réu. O caso parecia resolvido. E ganho, para a acusação.

O.J.Simpson, porém, contratou os melhores advogados da época e montou a equipe de defesa que ficou conhecida como dream team.

Durante o julgamento – que durou longos 372 dias – a defesa tomou conhecimento de gravações com diálogos entre agentes policiais que evidenciavam o gritante e inaceitável racismo que marcava a sociedade e, em especial, a polícia de Los Angeles.

As gravações revelavam casos em que provas foram manipuladas, plantadas e criadas na intenção de incriminar e punir negros. Os advogados de O. J. Simpson – que é negro -, então, construíram o caso em torno da questão racial. Os jurados, em sua maioria negros, decidem por absolver O. J. Simpson.

A absolvição guarda menos relação com as provas produzidas e mais com à discriminação racial. É como se o júri, ao absolver O. J. Simpson, estivesse condenando o racismo que manchava a sociedade.

Embora a questão racial tenha sido, portanto, o cerne do julgamento, há que se atentar para outra discriminação que restou tão evidenciada quanto: a praticada em face da mulher.

O crime que ensejou o julgamento é exemplo típico de violência de gênero: o homem que não aceita que a mulher – que crê ser propriedade sua – se divorcie e retome uma vida sem ele. No Brasil, embora exista a Lei Maria da Penha (Lei n. 11340/2006) – assim denominada em homenagem à uma mulher que foi vítima de duas tentativas de homicídio pelo próprio marido -, os números seguem em patamares inaceitáveis.

Mapa da Violência de 2015 revela que durante o ano de 2013 foram mortas 4762 mulheres, o que significa que treze mulheres morrem, por dia, todos os dias, no Brasil. Ainda conforme o mesmo estudo, em 33,2% dos casos, a mulher é morta – como no caso em apreço – pelo companheiro ou ex-companheiro.

Tais números é que conduziram ao advento da Lei n. 13104/2015, que inseriu expressamente o crime de feminicídio no Código Penal (art. 121, par. 2o, inc. VI).

Se é verdade que a violência contra a mulher deu origem ao julgamento de O. J. Simpson, também é verdade que nele não se esgotou. Durante o julgamento, a discriminação à mulher se renovou em distintos momentos e circunstâncias. Embora o réu fosse o ex-jogador de futebol americano, informações quanto aos advogados e promotores vieram à tona, na tentativa de inibi-los e desestabilizados.

Foi nesse contexto que a promotora de justiça que atuou na causa, Marcia Clark, passou a ser exposta e humilhada na mídia. Primeiro vieram manchetes julgando a breguice (!) das roupas que ela vestia e dos cachos que caracterizavam o seu cabelo.

Ela, pressionada e suscetível, tentou cortá-los, momento no qual se tornou alvo de nova ridicularização. A promotora foi atingida a tal ponto que, ao final do julgamento, se apresentou com os cabelos alisados.

Não bastasse, fotos de Marcia Clark de topless estamparam os noticiários de todo o país. Um ex-marido, com pouco dinheiro e caráter, foi quem vendeu à mídia a foto, tirada anos antes, durante um passeio do casal à praia.

O advogado de O. J. Simpson também não passa incólume. Sua vida é revirada e ele é, assim, acusado de já haver agredido fisicamente a ex-companheira. Note-se que, mesmo quando se tenta obter informações que atinjam o advogado (homem) da causa, o que vem à tona é (mais) uma violência contra a mulher.

A violência de gênero sutilmente se espalha por todo o julgamento. Está presente nas gravações telefônicas apresentadas aos jurados, quando os interlocutores ofendem a esposa do juiz; está presente nas opiniões que os jurados – e juradas – emitem acerca da promotora de justiça; está no desprezo do advogado quando a promotora informa ao juiz de sua impossibilidade de permanecer no tribunal durante a noite em razão dos filhos pequenos, e em tantas outras entrelinhas.

Ao final do julgamento, já ciente da absolvição de O. J. Simpson, a promotora de justiça confidencia a um colega: escolheu a profissão e a luta pelo direito das vítimas justamente em razão de haver sido violentada sexualmente quando adolescente. O estuprador foi absolvido, o que a fez sentir duplamente violentada.

Também nesse ponto a Los Angeles de 1995 guarda triste semelhança com o Brasil de 2017. O 9o Anuário Brasil de Segurança Pública registrou que, no país, ocorre um crime sexual a cada onze minutos, tendo a mulher como vítima.

Não obstante esse dado chocante, pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e realizada pelo Datafolha em 2016, revelou que 33% da população brasileira acredita que a vítima possui culpa pelo estupro que sofre, o que torna o cenário ainda mais desolador.

O julgamento de O.J.Simpson, portanto, foi, e aqui não se está a julgar o erro ou acerto, uma resposta à inaceitável discriminação racial. Os jurados – homens e mulheres – disseram não ao racismo. Não à violência policial contra os negros. E esse não, é certo, deve ecoar em qualquer século e continente.

Mas foi, também, uma resposta à discriminação contra a mulher. Os jurados – homens e mulheres – deixaram sem resposta a violência de gênero. Aceitaram-na. Assim como a mídia. Assim como a sociedade. Aceitaram-na. Mais do que isso, a reforçaram e exacerbaram. Dentro e fora do julgamento. De modo sutil e de modo escancarado. Mas sempre impunemente.

Que um dia o não à violência de gênero também faça eco. Em todo século e continente. Na ficção da Netflix – que também é do sexo feminino – mas, principalmente e urgentemente, na vida real.

Marion Bach

Advogada (PR) e Professora

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