O conceito de ordem pública e sua utilização como instrumento de controle social
O conceito de ordem pública e sua utilização como instrumento de controle social
Cabe-nos inicialmente realizar uma incursão crítica acerca da terminologia ordem pública. Tal conceito, utilizado no sistema de justiça criminal brasileiro como justificativa para a repressão estatal, mais precisamente como valor social a ser protegido através da segregação provisória, não logra êxito em se autotraduzir. Ou seja, trata-se de um termo aberto, formado por duas palavras igualmente abstratas e que não dão conta de determinar seu real significado, que acaba sendo extraído a partir de quem utiliza o termo.
Ordem, segundo os dicionários, significa uma relação estabelecida entre uma pluralidade de elementos, caracterizando-se, portanto, como o contrário de caos. Para compreender ordem, é necessário pensar em desordem, ou seja, algo desorganizado, desestruturado, desalinhado, desajustado. Fica clara a dificuldade de se compreender ordem de uma única maneira, uma vez que ordem, para um bairro composto de jovens que varam a madrugada festejando com música alta, será diferente para um bairro formado por idosos que dormem e acordam cedo.
Da mesma forma ocorre que o conceito de público, igualmente aberto e abstrato. É considerado público aquilo que é de todos, da coletividade, ou seja, que não é individual. Na medida em que as palavras ordem e público não possuem um significado objetivo, diferente não seria o problema envolvendo a junção de ambas as palavras ao formarem o conceito ordem pública:
Acerca da vagueza do conceito de ordem pública, Luis Roberto Barroso diz o seguinte:
Por vezes, uma regra conterá termo ou locução de conteúdo indeterminado, aberto ou flexível, como, por exemplo, ordem pública, justa indenização, relevante interesse coletivo, melhor interesse do menor. Em hipóteses como essas, a regra desempenhará papel semelhante ao dos princípios, permitindo ao intérprete integrar com sua subjetividade o comando normativo e formular a decisão concreta que melhor irá reger a situação de fato apreciada (BARROSO, 2001, p. 37).
Tal vagueza acaba por dar espaço a um discurso de ordem pública, que não significa propriamente a busca por uma sociedade em ordem, alinhada, organizada e onde haja paz social, mas sim diz respeito a um discurso político que surge geralmente justificado pelo “acautelamento” do meio social, pelo clamor público, pela gravidade do crime, à segurança da vítima e os mais variados significados retóricos que se encaixam em qualquer tipo de situação sem a mínima concretude.
Ordem pública para quê(m)?
Não é possível divorciarmos sistema penal de seletividade. A atuação do parlamento na criação da norma penal e das agências repressivas do estado na execução e fiscalização acerca do cumprimento de tais normas é guiado por grupos determinados, sem a participação daqueles que são os principais destinatários desse sistema.
Ou seja, a normatização penal é regulada por quem tem capital ou, pelo menos, pelos representantes diretos financiados pelo capital. Nesse norte, não é difícil concluirmos que o direito penal tem um destinatário certo, que está distante dos condomínios de luxo onde moram os seus intérpretes. A esse respeito, Lola ANYIR DE CASTRO (1983, p. 15):
Quando falarmos nos mecanismos de criação das normas penais, veremos que não há uma natureza própria do delitivo, mas que o delitivo é imposto de cima pela pessoa ou grupo que tem mais poder; que isso depende da posição de poder, e que esta posição de poder determinará que os interesses, as crenças e a cultura dos que usufruem essa posição de predomínio definam o que é delitivo em uma sociedade. Não podemos dizer que o homicídio ou o furto são delitivos por natureza. São delitivos, porque em um determinado momento da história de um país, aqueles que detinham o poder suficiente para assegurar, com os instrumentos legais, os seus interesses e crenças, consideraram que era útil castigá-los. A prova disso é que há dentro da coletividade uma série de valores fortemente desaprovados, que excedem o limite de tolerância da comunidade e que, no entanto, nunca chegam a fazer parte da conduta legalmente reprimida, ou seja, que é apenas conduta desviada, não conduta delitiva. Não é conduta delitiva porque não houve alguém que tivesse, por sua vez, poder e interesse suficientes para implantá-la como conduta delitiva.
Trata-se acima da seletividade primária, operada no parlamento com a criação de tipos penais direcionados para grupos determinados. Em um segundo plano encontra-se a seletividade, ou criminalização secundária, que diz respeito não a mera criação de tipos penais, mas sim a execução de tais normas a partir do processo penal a partir dos órgãos competentes.
Trata-se do “ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas” (ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR; BATISTA, 2003, p. 43).
A questão então é: se a própria noção de delito é relativa, bem como são subjetivos os valores que motivam a criação de condutas incriminadoras, sabidamente guiados por interesses ligados à proteção da propriedade privada, igualmente relativa será a noção de ordem pública, principalmente levando em consideração o perfil da magistratura brasileira e a qual grupo ela é originada.
Alice Bianchini, reproduzindo a lição de Maria Lúcia Karan, assevera que:
[…] os escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiça e de violência, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, são preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso ou para quem é vítima dos grupos de extermínio. (….) essa desigualdade, tão facilmente constatável, é, no entanto, encoberta por uma propaganda tão enganosa e eficaz, que, apesar disso, consegue “vender” a ideia da solução penal como alguma coisa desejável, até mesmo para os setores mais conscientes e progressistas. (KARAM, 2000, p. 62).
Neste rumo, a questão basilar a ser desnudada é que a dita preocupação com a ordem pública, reiteradamente invocada pela magistratura brasileira em bem verdade, não é uma preocupação social, mas sim uma estratégia de autotutela de grupos dominantes tomados pelo medo e preocupados em se manterem seguros.
A ideia é controlar os indesejáveis, excluindo-os e aniquilando-os. A preocupação do Estado não é com a ordem pública, porque, se assim fosse, algo seria feito em relação ao genocídio da juventude negra esquecida nas periferias do Brasil. A preocupação exalada pela caneta dos nossos juízes criminais é que a violência objeto de seus julgamentos não alcance os muros de suas casas de alto padrão localizadas em condomínios fechados em zonas nobres da Cidade.
Esta singela reflexão tenta estabelecer uma relação entre o discurso da ordem pública, seletividade penal e a ideologia da defesa social.
O encarceramento em massa é uma realidade brasileira, e quando questionado o judiciário afirma não ser o responsável, culpando o executivo pela má gestão do sistema penitenciário, que deixa o debate cada vez mais pobre e as devidas responsabilidades não são assumidas.
Conclusão
Dessa forma, concluímos a presente reflexão constatando que a criminologia crítica tem que ocupar seu papel para desconstituir o discurso da ordem pública, desmascarando este estelionato dogmático que, travestido de boa intenção, em bem verdade não passa de uma estratégia de defesa dos interesses privados voltados a excluir cada vez mais àqueles que vivem a margem desta sociedade de consumo.
O discurso da ordem pública tem que ser denunciado, combatido, desvelado, para que possamos refletir quem são nossos juízes e quais suas reais intenções, para que possamos sonhar um dia com um judiciário mais democrático, formado por gente como a gente, de carne e osso, branca e preta, oriunda da rua, do campo, da periferia. Não é justo que a aristocracia continue a julgar os escravos.
Essa conta não fecha, e o resultado já sabemos!
Leia também:
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REFERÊNCIAS
ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reação social. Tradução de Éster Kosovski. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 15.
BARROSO, Luis Roberto. Revista da EMERJ, v.4, n.15, 2001, pg 37.
KARAM, Maria Lúcia, apud BIANCHINI, Alice. A seletividade do controle penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 8, n. 30, abr./jun. 2000, p. 62.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro, BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 43.
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