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O que são crimes políticos?


Por Bruno Milanez


A CR/88 prevê, na parte inicial da regra do art. 109, IV, a competência da Justiça Comum Federal para o processo e julgamento dos crimes políticos. Neste particular, o texto mantém tradição histórica, como se verifica das previsões positivadas nas Constituições de 1891 (art. 60, i), 1934 (art. 81, i) e 1967 (art. 119, IV).

Esta tradição foi excepcionada na história institucional e constitucional do País. Com efeito, as Constituições de 1937 e 1946 não previram expressamente a competência para o processo e julgamento, em primeira instância, de crimes políticos, determinando apenas que os crimes contra a “segurança externa do País” seriam processados e julgados perante a Justiça Militar, consoante previsão dos arts. 111, caput e art. 108, § 1º.

A CR/46 não definiu o que seriam os crimes políticos, ou mesmo distinguiu esta categoria em face dos crimes contra a segurança externa do País. No que diz com estes últimos, a questão assumia contornos de singeleza, pois a primeira parte do Livro II do Código Penal Militar vigente à época (Decreto Lei 6.227/44) previa, no rol do Título I, os crimes contra a segurança externa do País (arts. 118 a 129). A questão nodal, portanto, residia em definir o que seriam os crimes políticos, o que não ocorreu expressamente em sede constitucional ou mesmo infraconstitucional. Neste quadrante, a doutrina passou a subdividir os crimes políticos em puros e relativos. O crime político puro é aquele que

“ofende ou expõe a perigo de ofensa, exclusivamente, a ordem política em sentido amplo ou a ordem político social (compreensiva não apenas das condições existenciais e o regime governamental do Estado e dos direitos políticos dos cidadãos, senão também, nas suas bases fundamentais, a organização social, sôbre a qual se ergue a ordem política em sentido estrito), e cujo autor, além disso, tem por escopo êsse mesmo resultado específico ou assume o risco de seu advento. Crime político relativo é o crime comum, isto é, lesivo de interêsses de direito comum, mas praticado por motivo político, ou como meio de crime político, formando com êste unidade jurídica (crime complexo), ou no curso ou por ocasião de crime político, apresentando-se um e outro intimamente conexos (crime político por conexidade).” (HUNGRIA, 1960, p. 7).

Nelson HUNGRIA, a partir da dicotomia delineada, filiava-se à doutrina subjetiva, afirmando a existência de crime político não apenas pela adequação da conduta a um tipo penal previsto no ordenamento como crime político, mas exigindo ainda um especial fim de agir (dolo específico), consubstanciado na intenção específica do agente em ofender a ordem política. Também afirmando a existência de um especial fim de agir nos crimes políticos, FRAGOSO (1984, p. 229-30) sustenta que

“Para que possa caracterizar-se o crime político é indispensável que a ofensa aos interesses da segurança do Estado se faça com um especial fim de agir. É indispensável que o agente dirija a sua ação com o propósito de atingir a segurança do Estado. (…) Pode-se dizer que o fim de agir é aqui um elemento essencial ao desvalor da ação neste tipo de ilícito, sem o qual verdadeiramente não se pode atingir os interesses da segurança do Estado. A exigência do fim de agir é uma indefectível marca de uma legislação liberal nessa matéria. Mas pode-se também dizer que essa exigência do fim de agir está na natureza das coisas. Não há ofensa aos interesses políticos do Estado de direito democrático se o agente não dirige sua ação deliberadamente contra a segurança do Estado.”

A questão acerca do elemento subjetivo do tipo nos crimes políticos é historicamente controvertida, havendo posições no STF que abarcam a doutrina objetiva – entendendo desnecessário o móvel específico para a caracterização do crime político – e outras que adotam a tese subjetiva (sobre as divergências no STF, acerca da adoção da corrente objetiva ou subjetiva para a caracterização do crime político, cf. HUNGRIA, 1960, p. 7-9).

Independente da se aceitar ou não o especial fim de agir como elemento subjetivo específico nestes delitos, certo é que a partir da conceituação doutrinária, consolidou-se entendimento de que os crimes políticos em sentido puro estavam positivados na Lei 1.802/53 (Lei de Segurança Nacional) – que tipificava os delitos contra a segurança interna do País –, bem como em dispositivos esparsos do Código Penal Militar (Dec. Lei 6.227/53), do Código Eleitoral (Lei 1.164/50) e da Lei de Imprensa (Lei 2.083/53) (HUNGRIA, 1960, p. 7-8).

Na vigência da CR/1969, discutiu-se novamente a respeito dos crimes políticos, pois de um lado, o art. 125, IV, determinava a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de crimes políticos, ao mesmo tempo em que o art. 129, § 1º, dispunha que a competência para o processo e julgamento de crimes contra a segurança nacional seria da Justiça Militar.

O texto constitucional não distinguia as duas categorias, que acabaram por se equivaler em sede infraconstitucional, pois a Lei de Segurança Nacional absorveu os crimes políticos. Em razão disso, o STF firmou entendimento no sentido de que os crimes políticos foram incorporados ao ordenamento infraconstitucional com status de crime contra a segurança nacional.

Na atualidade, há quem sustente que os crimes políticos não foram regulamentados pelo ordenamento infraconstitucional, ou que a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83) não foi recepcionada pela CR/88. Há ainda quem sustente que os crimes políticos possuem natureza jurídica de infração administrativa (NICOLITT, 2010, p. 184).

A doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que os crimes políticos estão tipificados na Lei 7.170/83, que prevê os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. No que se refere à definição dos crimes políticos, o STF segue atualmente e de forma majoritária a doutrina subjetiva, entendendo necessário o dolo específico – especial fim de agir, consubstanciado no desiderato político – para que se aperfeiçoe a infração política:

CRIME POLÍTICO. COMPETÊNCIA. INTRODUÇÃO, NO TERRITÓRIO NACIONAL, DE MUNIÇÃO PRIVATIVA DAS FORÇAS ARMADAS, PRATICADO POR MILITAR DA RESERVA (ARTIGO 12 DA LSN). INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇÃO POLÍTICA: CRIME COMUM. PRELIMINARES DE COMPETÊNCIA: 1ª) Os juízes federais são competentes para processar e julgar os crimes políticos e o Supremo Tribunal Federal para julgar os mesmos crimes em segundo grau de jurisdição (CF, artigos 109, IV , e 102, II, b), a despeito do que dispõem os artigos 23, IV, e 6º, III, c, do Regimento Interno, cujas disposições não mais estão previstas na Constituição. 2ª) Incompetência da Justiça Militar: a Carta de 1969 dava competência à Justiça Militar para julgar os crimes contra a segurança nacional (artigo 129 e seu § 1º); entretanto, a Constituição de 1988, substituindo tal denominação pela de crime político, retirou-lhe esta competência (artigo 124 e seu par. único), outorgando-a à Justiça Federal (artigo 109, IV). 3ª) Se o paciente foi julgado por crime político em primeira instância , esta Corte é competente para o exame da apelação, ainda que reconheça inaplicável a Lei de Segurança Nacional. MÉRITO: 1. Como a Constituição não define crime político, cabe ao intérprete fazê-lo diante do caso concreto e da lei vigente. 2. Só há crime político quando presentes os pressupostos do artigo 2º da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/82), ao qual se integram os do artigo 1º: a materialidade da conduta deve lesar real ou potencialmente ou expor a perigo de lesão a soberania nacional, de forma que, ainda que a conduta esteja tipificada no artigo 12 da LSN, é preciso que se lhe agregue a motivação política. Precedentes. 3. Recurso conhecido e provido, em parte, por seis votos contra cinco, para, assentada a natureza comum do crime, anular a sentença e determinar que outra seja prolatada, observado o Código Penal.” – g.n. – (STF – RC 1468 segundo, Rel. Min. ILMAR Galvão, Rel. p/ Acórdão  Min. Maurício Corrêa, DJ 16.8.2000)


REFERÊNCIAS

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

HUNGRIA, Nelson. A criminalidade política no direito brasileiro. In: Revista Forense. vol. 188, a. 87 (mar-abr. 1960).

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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