Política criminal brasileira e o Plano Nacional de Segurança Pública
A política criminal adotada por um Estado é reflexo e termômetro de diversos aspectos socioculturais deste. Através das diretrizes adotadas é possível perceber qual o patamar civilizatório que aquele Estado alcançou. É também possível verificar o grau de efetividade que os direitos humanos obtiveram em sua atuação.
Um olhar mais cuidadoso pode notar na política criminal um reflexo negativo ou positivo quanto a representatividade popular nas decisões do Estado, revelando sua real fisionomia – se democrática ou autoritária.
De um outro ponto de vista, partindo da política criminal adotada é também possível perceber a profundidade da segregação social e da concentração de poder (influência) existente nas mãos dos que ditam as regras do mercado.
De certa forma analisar a política criminal de um Estado se mostra mais revelador do que o estudo de sua legislação, mesmo de sua Constituição.
Não raro o que está estabelecido no corpo normativo e garantido na Constituição é vilipendiado no cotidiano do sistema penal, o que torna a avaliação da política criminal primordial para compreensão fidedigna da atuação do Estado.
Pode-se procurar assimilar a política criminal de um país através de diversas manifestações suas relacionadas ao sistema penal. Diversos documentos podem embasar essa pesquisa.
A Exposição de Motivos do Código Penal e do Código de Processo Penal é um bom caminho. As decisões do Judiciário, em especial do Supremo, são outra fonte rica de informações neste sentido, ainda que esta esfera se diga desligada das decisões “políticas”.
Isso porque é preciso entender política criminal como algo muito mais amplo e complexo do que simplesmente as ações e decisões emanadas do Poder Executivo.
Quando se fala em política criminal está em pauta, conforme leciona ZAFFARONI (2015, p. 126), a “ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”
A seleção dos bens e dos meios de tutela não se limita ao que fica positivado nos códigos penal e processual penal e leis penais esparsas.
Quando o Judiciário, por exemplo, altera ou esvazia o significado da presunção de inocência ou quando limita a aplicação do princípio da insignificância com base em critérios subjetivos está, inegavelmente, fazendo política criminal.
Está dirigindo o aparato penal num determinado sentido e, consequentemente, alargando ou restringindo o alcance de liberdades e garantias fundamentais.
Uma terceira fonte de análise de política criminal é o Plano Nacional de Segurança Pública. Queremos nos ater um pouco a este documento.
O PNSP é emitido pelo Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública e visa estabelecer metas, tecer um planejamento e elaborar um compromisso conjunto das esferas públicas para redução da criminalidade.
Aqui o estudante de Criminologia já fica atiçado querendo lançar a fatídica pergunta: qual criminalidade? Mas não nos adiantemos. O escopo deste artigo será apenas o de procurar perceber o que se pode extrair do último PNSP instituído no país.
Em 06/01/2017 o então Min. da Justiça Alexandre de Moraes, com grande alarde anunciou um PNSP que seria “diferentemente dos anteriores, não um plano de intenções, mas operacional”. Importante lembrar que o PNSP veio à tona dez dias após a morte de 56 detentos em um presídio de Manaus/AM.
Quais eram as principais medidas propostas (veja AQUI a apresentação de Power point com a íntegra). Destacamos quatro delas:
1) Elaboração de estatísticas de mensuração de eficácia da atividade de polícia judiciária;
2) Implantação e/ou interligação de sistemas de videomonitoramento nos Estados e Municípios nos Centros integrados de Comando e Controle Regionais (CICCRs), nos Centros de Operação estaduais ou nos COPOMs, com a participação de todas as agencias de segurança e as principais administrativas;
3) Ampliação da inserção dos perfis genéticos no banco de dados de DNA;
4) R$800 milhões repassados aos Estados para construção de penitenciárias e abertura de aproximadamente 20 a 25 mil vagas.
Não se pretende impugnar cada uma destas medidas.
Também é correto dizer que o plano possuía algumas poucas e tímidas virtudes, voltadas para o fato de mencionar mutirões com o fim verificar prisões arbitrárias ou mantidas sem a fundamentação legal (preventivas), assim como a criação de cursos de capacitação para egressos do sistema prisional.
Mas enfatizamos: tudo muito sucinto nestas áreas.
O tópico “Inserção e Proteção Social” possuía apenas dois modestos itens, enquanto o tópico sobre aumento da capacidade de vigilância da Polícia Rodoviária Federal era detalhadamente explanado, com direito a mapa explicativo relacionando as áreas de implantação de novas câmeras e outros aspectos de “inteligência” operacional de monitoramento.
Sem adentrar ponto a ponto, o que o quadro geral demonstra? Diversos estudiosos das áreas de ciência política e criminologia teceram pesadas críticas ao PNPSP proposto. Não sem razão.
A resposta de reforço de medidas repressivas e aumento da vigilância não coaduna com os propósitos legítimos de aumento da segurança e paz social.
Na realidade, chega a ser impressionante que nesta quadra do século XXI ainda se acredite que medidas deste tipo produzam algum resultado senão o agravamento do caos penitenciário e solidificação do poder das grandes facções que comandam o tráfico de entorpecentes e outros mercados marginais.
Não se precisa de muito para perceber que a guerra às drogas e a manutenção da militarização da polícia se combinam para permitir uma guerra civil camuflada no interior de nosso país.
Mesmo nos limitando, devido ao espaço, a uma análise genérica do PNSP fica fácil prognosticar a verdade que ele anuncia: um maior número de presídios apenas permitirá o aumento do número já hoje vertiginoso de detentos, fazendo pouco ou quase nada em relação à raiz do problema.
Pior do que isso, a ideologia por trás do plano revolve um discurso de “tolerância zero” e vigilância/ingerência policial que não produziu melhoras sociais em nenhuma das situações em que foi experimentada.
Não bastassem esses apontamentos, no dia 24/02/2017 o Ministro interino da Justiça, José Levi Mello do Amaral Junior, assinou a portaria nº 182, instituindo oficialmente o PNSP. Qual o seu teor?
Uma síntese da apresentação de Power Point apresentada no dia 06/01/2017 pelo então Min. Alexandre de Moraes? Não. Algo muito, muito mais sucinto e insosso, ainda mais desconectado da realidade do que o plano messiânico anterior. Reproduzimos a portaria em seus quatro parágrafos:
Art. 1º - Fica instituído o Plano Nacional de Segurança Pública - PNSP, cujos princípios são a integração, a colaboração e a cooperação entre União, Estados, Municípios e o Distrito Federal. Art. 2º - O acompanhamento do PNSP será realizado pelos sistemas do Ministério da Justiça e Segurança Pública e dos demais entes envolvidos diretamente na sua execução. Art. 3º - As estratégias e ações estabelecidas no PNSP serão desenvolvidas em conjunto e mediante consenso entre a União e o respectivo ente federado. Art. 4º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Onde ficou a operacionalidade? Ondem foram parar as dotações orçamentárias para construção de presídios? Em que esquina ficaram as ações de capacitação do efetivo? Será mesmo que a segurança pública, passada a breve comoção dos corpos mutilados de Manaus, se resumiu a estas linhas opacas e frouxas?
Tão insípido é o teor do texto normativo que não permite nem mesmo que desenvolvamos uma crítica. Isso é terrível para o Estado de Direito.
Quando suas políticas são tão obscuras e ilegítimas que já não há nem mesmo a preocupação em disfarça-las numa produção textual mais extensa é porque qualquer possibilidade de reversão do quadro punitivista já se esvaiu em sangue e dor. Já não existe.
Esta Portaria entra em vigor na data de sua aplicação. E se não entrasse, que diferença faria?
REFERÊNCIAS
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.