Artigos

O valor da palavra dos policiais no sistema de (in) justiça

Uma reportagem[1] publicada pelo G1 no dia 18 de março de 2023 sobre a criminalização da pobreza e pouca investigação no combate às drogas, pesquisa concluída pelo IPEA em 2022 e ainda não publicada, com resultados parciais, me fez querer falar sobre algo que pesquisei na minha tese de doutorado[2], onde procurei investigar a representação social da violência policial para a Magistratura estadual.

            É que para que se pudesse construir a representação social do fenômeno violência policial para os Juízes, ou seja, como enxergam esse fenônemo e as implicações que esse olhar produz não apenas sobre a violência policial, mas, também, no sistema de justiça, foi preciso alicerçar-se em várias categorias de análise até a construção da violência policial, não nominada ao longo de todas as metodologias aplicadas na tese (observação de audiências de custódia; análise de decisões judiciais e entrevistas semiestruturadas).

            Nesse sentido, o valor conferido a palavra dos policiais e a construção do perfil da vítima, esse numa clara incidência do que o professor Michel[3] Misse traduz enquanto sujeição criminal, foram fundamentais à compreensão do que a Magistratura tinha por violência policial.

            Á palavra dos policiais é creditada uma verdade absoluta, na medida em que se confere a ela uma presunção de veracidade, legalidade e legitimidade, eis que cunhada de fé pública, enunciada por autoridade que representa o Estado.

            Em contrapartida, a vítima, além da análise empreendida de quem seja ela (se conta com passagens policiais, antecedentes, reincidência, etc), o que ensejaria a compreensão do comportamento adotado, ainda que repreendido, é conferida uma presunção de inveracidade, ou seja, de mentira para benefício próprio e prejuízo ao policial, com instrução muitas vezes da sua defesa que também não tem credibilidade nessa toada.

            Jesus[4] já teria sustentado que a crença se constitui em um “ato de fé”, porque dispensa comprovação. Na sua pesquisa, exatamente onde procurou descrever e analisar como os operadores do direito recepcionam as narrativas policiais nos casos de flagrantes de tráfico de drogas, constatou uma série de crenças: na função policial, no saber policial, na conduta policial, de que o acusado vai mentir, da associação entre criminalidade e perfil socioeconômico e no papel de defesa da sociedade.

            Esse conjunto de crenças, de acordo com a autora, compõem o que designou de “regime de validação”, um tipo de sistema em que os vocabulários são considerados ou não, a depender do repertório de crenças que lhe dá suporte.

            A pesquisa então citada pela matéria do G1 detalha o perfil dos réus em ações sobre drogas e a criminalização da pobreza (homem, 86% dos processos; negro, 45%; idade entre 18 e 30 anos, 71%; que não concluiu a educação básica, 50%; e trabalha como autônomo, 43%), as abordagens são feitas com base em denúncias anônimas das quais não há registros nos processos e entradas na casa de suspeitos são feitas sem autorização judicial, sendo que em 73% dos processos analisados houve algum tipo de condenação – seja por todos os crimes denunciados, seja por algum deles.

            E apesar da jurisprudência pioneira que vem se consolidando no Superior Tribunal de Justiça, a qual tem instigado e pensado acerca dessas ilegalidades, a pesquisa aponta que em 93% dos casos que envolveram denúncias anônimas, estas foram mencionadas apenas nos depoimentos dos policiais.

            Na minha tese de doutorado[5] já havia pontuado que: “A construção, portanto, operada pelos juízes do fenômeno social da violência policial implica a blindagem dessas práticas policiais, as quais, conforme Lima (2019) nos demonstrou, são complementares ao sistema de justiça criminal brasileiro.”

            Tanto que referi, também, na oportunidade, questionando a dificuldade de responsabilização por parte do agente público, que o que não se consegue perceber é que essa dificuldade de responsabilização encontra reprodução numa cadeia que se inicia pelo próprio policial na ponta, quando da seleção, que perpassa pelo olhar do delegado de polícia; em casos de lavratura do flagrante delito e de investigação chancela a palavra do policial da ponta, pelo promotor de justiça, o qual se vale do relatório e dos relatos dos policiais para propor o processo criminal, e pelo próprio Judiciário, que não enxerga, naturaliza, ou até enxerga, mas não quer creditar a sua função qualquer iniciativa, uma vez que precisa obter credibilidade diante da sociedade, dar conta da sua importância e legitimidade, a qual se constrói, nesse caso, também pela legitimidade emprestada aos atos de violência policial. Afinal, a prova que será utilizada pelo juiz no ato de julgar o conflito praticamente se resume ao que se colheu no flagrante ou na investigação, assim como na palavra dos próprios policiais.

            Quando percebemos que a violência policial no Brasil não é um remascente, mas uma estrutura que atravessa todos os campos, na visão de Bourdieu, é que compreendemos que para que se possa romper com essa lógica a qual a pesquisa nos aponta, e com esse regime de validação da palavra dos policiais, que se imbrica não apenas com a violência policial, mas com o olhar conferido à ‘criminalidade’ que permeia os processos judiciais e superlota as prisões de forma evidentemente racista e seletista; é necessário ações estruturais, as quais não apenas pautem a reforma das polícias, a alteração legislativa da lei de drogas, mas que abranjam os demais Poderes, como o Judiciário, e as demais instituições atuantes no sistema de justiça, como Ministério Público, Defensorias, OAB, para além da sociedade como um todo, através da adoção de políticas públicas alicerçadas em evidências e prevenção.             Pode até parecer num primeiro momento que esses temas não estão entrelaçados, mas o estão, mais do que se possa imaginar, e o enfrentamento deles de forma estrutural, dada a complexidade que informam, é que somente terá o condão de fazer com que pesquisas como estas e outras tantas possam apontar dados diversos, menos desiguais e mais justos.


[1] Vide em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/03/18/criminalizacao-da-pobreza-e-pouca-investigacao-no-combate-as-drogas-veja-conclusoes-de-pesquisa-engavetada-pelo-governo.ghtml>. Acesso em: março, 2023.

[2] MUNIZ, Mariana Py. Polícia! Para quem precisa de Justiça. Como a Magistratura representa a violência policial. Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido, 2021.

[3] MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 8, n. 3, p. 371-385, set./dez. 2008.

[4] JESUS, Maria Gorete Marques de. A verdade jurídica nos processos de tráfico de drogas. Belo Horizonte: D´Plácido, 2018.

[5] MUNIZ, Mariana Py. Polícia! Para quem precisa de Justiça. Como a Magistratura representa a violência policial. Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido, 2021.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo