É possível falar em litigância de má-fé no processo penal?
Já tivemos oportunidade de pontuar diversas situações em que o Código de Processo Civil poderá influenciar direta ou indiretamente no processo penal, por força de sua aplicação subsidiária (art. 3º do CPP). Uma dessas situações diz respeito ao conhecido instituto da litigância de má-fé.
A litigância de má-fé é a conduta do autor, réu ou interveniente que deduza pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; altere a verdade dos fatos; use do processo para conseguir objetivo ilegal; oponha resistência injustificada ao andamento do processo; proceda de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; provoque incidente manifestamente infundado; ou interponha recurso com intuito manifestamente protelatório (arts. 79 e 80 do CPC).
As sanções aplicáveis, de ofício ou a requerimento, são a aplicação de multa (de 1 a 10% sobre o valor corrigido da causa), a indenização da parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu, o pagamento dos honorários sucumbenciais e todas as despesas processuais. Segundo o art. 142 do CPC:
Convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé.
Convém observar que algumas condutas que caracterizam litigância de má-fé podem tipificar ilícitos penais, como resistência (art. 329 do CP) ou fraude processual (art. 347 do CP). No processo penal, o juiz, por exemplo, pode indeferir provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias (art. 400, §1º, do CPP) e pode reputar protelatórios embargos de declaração que deduzam argumentos sobre os quais já houve expressa manifestação judicial, determinando seja certificado o trânsito em julgado da decisão (MC nº 11877 / SP).
O art. 653 do CPP traz uma sanção praticamente esquecida na prática forense, de condenação ao pagamento de custas à autoridade que, por má-fé ou evidente abuso de poder, tiver determinado prisão para a qual posteriormente concedeu-se a soltura por meio de ordem de habeas corpus. A má-fé também é mencionada no CPP quando trata da interposição de um recurso por outro, hipótese na qual, via de regra, aplicar-se-á o princípio da fungibilidade (art. 579).
Desde 2009, por ocasião do julgamento da APn 477/PB, de relatoria da Min. Eliana Calmon, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça vem afirmando a impossibilidade de imposição ao réu de multa por litigância de má-fé na seara penal, por considerar que sua aplicação constitui analogia in malam partem, sem contar que a imposição de tal multa, não prevista expressamente no processo penal, implicaria prejuízo para o acusado, na medida em que inibiria a atuação do defensor.
A 5ª Turma do STJ reafirmou essa posição quando do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 44.129/PE, de relatoria do Min. Reynaldo Fonseca, onde reconheceu ser manifestamente ilegal ato judicial que impôs multa por litigância de má-fé a réu de ação penal.
Tal posicionamento está de acordo com a garantia fundamental da ampla defesa, reconhecida pela Constituição Federal no art. 5, inc. LV. Obviamente, até mesmo a defesa encontra certas limitações, especialmente impostas pelo princípio da legalidade e da proporcionalidade, mas também pela boa-fé. O fato é que o processo penal não admite interpretação desfavorável ao réu, justamente porque sua gênese está ligada à necessidade de imposição de freios à intervenção estatal, historicamente ilimitada. Mas e quando a litigância de má-fé se dá por parte da acusação?
O processualista Guilherme de Souza Nucci afirma que, em quase 30 anos de profissão como magistrado, nunca viu decisão de tribunal algum determinando fosse apurada a responsabilidade de autoridade judiciária por nítido abuso de poder. O autor chama atenção para as situações em que juízes mantém alguém preso por tempo excessivo, sem levar em conta as consequências de seu ato. Quando esses indivíduos são beneficiados com habeas corpus não se verifica efetiva apuração do abuso praticado. Ou seja, a autoridade não responde na prática por sua conduta lesiva. O mesmo pode-se dizer em relação ao Ministério Público ou a vítimas quando oferecem denúncias e queixas-crime manifestamente infundadas, por vezes até mesmo por fatos que não são criminosos, o que se aproxima da comunicação falsa de crime (art. 340 do CP) ou mesmo da denunciação caluniosa (art. 339 do CP).
Nucci sustenta, então, que, para o órgão acusatório poder-se-ia utilizar, por analogia, o disposto no art. 80 do CPC.
“Imagine-se o promotor que, propositadamente, ingressa com ação penal contra pessoa sabidamente inocente, juntamente com o magistrado que, de maneira leviana, recebe a denúncia. Independente de responsabilidade criminal ou funcional, há de se garantir a indenização civil pelo dano causado”.
Não é nada incomum a conduta de juízes adotarem determinado entendimento, contrário à jurisprudência e até mesmo à lei, pouco importando-se com as decisões dos órgãos hierarquicamente superiores, que acabam por reconhecer a ilegalidade dos atos praticados. Existe um manto de impunidade sobre atos de autoridades judiciárias que decidem como bem entendem, causando prejuízos irreparáveis aos acusados. Nada obstante, o art. 143 do CPC prevê que o juiz responda, civil e regressivamente, por perdas e danos quando, no exercício de suas funções, agir com dolo ou fraude, ou recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte, no prazo de 10 dias.
Quanto ao Ministério Público, a situação pode ser ainda pior, ou seja, promotores e procuradores tem ficado praticamente imunes a qualquer tipo de sanção por atos abusivos praticados no exercício de suas funções públicas.
Nas raras ações judiciais que existem contra membros do MP, os Tribunais têm redirecionado a responsabilidade ao Estado, minimizando as chances de real indenização, o que constitui grave violação ao direito à integral reparação das verdadeiras vítimas, cidadãos que foram acusados injusta ou ilegalmente, expostos à execração pública (às vezes em entrevistas coletivas midiáticas e sensacionalistas), sem base empírica idônea, sem evidências mínimas ou efetivamente sem que seus atos caracterizem figuras típicas.
No REsp nº 1162598/SP, a 4ª Turma do STJ considerou que
O representante do parquet que extrapola os limites de sua atuação profissional, promovendo a divulgação televisiva dos fatos e circunstâncias que envolveram as pessoas em processo que tramita em segredo de justiça, possui legitimidade para estar no polo passivo da respectiva ação de responsabilidade por danos morais (art. 26, § 2º, da Lei n. 8.625, de 12.2.1993; e art. 201, § 4º, da Lei n. 8.069/90).
Não surpreende que o órgão acusatório, através da atuação de determinados membros, também costume insistir em recursos manifestamente protelatórios, apenas no intuito evidente de manter certas pessoas como réus ou manter situações jurídicas ilegais (p. ex. apreensão de bens, direitos ou valores). Valem-se esses agentes não apenas da condescendência do Poder Judiciário, que ratifica esses atos, como do próprio Ministério Público, que não tem demonstrado punição suficiente e exemplar (ao menos pública) por meio de seu Conselho Nacional (CNMP), cujas competências são definidas pelo artigo 130-A, §2º, da Constituição.
As condutas que configuram litigância de má-fé no processo civil são recorrentes no processo penal por parte da acusação. Entretanto, não há previsão de legal de sanção, muito menos vontade institucional de repressão. O Código de Processo Civil neste caso pode ser chamado a resolver a lacuna legislativa hoje existente.
Ainda que não seja possível aplicar exatamente as mesmas sanções, dadas as particularidades do processo penal, o reconhecimento expresso da litigância de má-fé terá consequências em eventual ação de reparação de natureza civil que o prejudicado terá legitimidade para ajuizar na esfera adequada, pleiteando indenização pelos danos que lhe foram causados.