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Reação social e prisão: possível diálogo?

Por Mariana Py Muniz Cappellari

De acordo com Shecaira (2013), a teoria da rotulação social ou etiquetagem, ou, também, teoria interacionista ou da reação social, de viés sociológico, surge nos anos 60 com o abandono do paradigma etiológico-determinista da criminologia, a qual se centrava, na sua quase totalidade, na análise apenas da figura da pessoa do infrator, passando a valer-se das relações conflitivas existentes dentro da sociedade, voltando-se, dessa forma, para o exame do controle social e das suas consequências. Mas a ideia de que a intervenção da justiça criminal, uma vez que o direito penal é instrumento de controle social formal, por exemplo, aprofunda a criminalidade, de acordo com o mesmo autor, não surge com os teóricos dos anos 60, mas antes disso, inclusive, sendo possível aferir dos escritos de Bentham e do próprio Lombroso, que a prisão contribuía para a criminalização.

Elbert (2009) afirma que a teoria da reação social ou etiquetamento sustentará que a criminalidade é criada pela sociedade, mediante a imposição de ‘etiquetas criminais’ a certos indivíduos, sendo que tal processo teria lugar mediante uma criminalização primária, que se traduz no estabelecimento de normas (o que é crime), e uma criminalização secundária, a qual significa nada mais nada menos do que a imposição dessas normas ao sujeito responsável, etiquetando-o.

Por isso que Shecaira (2013) ao resumir o modelo explicativo sequencial dos atos da teoria da reação social, exporá que a partir da delinquência primária surgirá por parte do Estado uma resposta ritualizada (processo) e estigmatizante, a qual terá o condão de gerar maior distância social e redução de oportunidades ao desviante (casos dos egressos do sistema prisional, por exemplo), surgindo, por outro lado, uma subcultura delinquente (prisão e efeitos da prisionização) com reflexo na sua autoimagem, por meio de um estigma decorrente da institucionalização (antecedentes), o qual poderá demandar em uma carreira criminal, haja vista a identificação por parte do desviante e a assunção do papel ou etiqueta imposta, podendo, assim, falar-se em delinquência secundária (reincidência).

Dessa forma, também Shecaira (2013) deixa claro que a decorrência lógica da criminalização de condutas e da persecução penal não é outra senão o surgimento de um processo estigmatizante para o condenado, haja vista as cerimônias degradantes, as quais são processos ritualizados a que se submetem os envolvidos com um processo criminal, em que o indivíduo é condenado e despojado de sua identidade, recebendo outra identidade, que, por sua vez, é degradada. Em sendo assim, pode-se falar que a pena atua como geradora de desigualdades, pois ela cria uma reação por parte da família, amigos, conhecidos, gerando um processo de marginalização e mais, pode-se assim afirmar que a criminalização primária produz rotulação (folha de antecedentes), que produz criminalizações secundárias, eis que o rótulo criminal produz a assimilação de suas características pelas pessoas rotuladas, gerando expectativas sociais de condutas correspondentes a esse rótulo, perpetuando, assim, o comportamento considerado criminoso e a aproximação dos indivíduos estigmatizados.

Nesse contexto, veremos com Alvino Augusto de Sá (2014) que a arquitetura carcerária, considerado o espaço físico da prisão, produz influência, inclusive, na vida mental do condenado, já que segundo o referido autor, a arquitetura é a arte de dimensionar o espaço, de definir o contorno do vazio, o que faz projetando o confronto direto do homem com o mesmo. Dessa forma, explica que a personalidade do individuo vai se estruturando, vai adquirindo identidade exatamente por meio da relação com o meio externo, com o espaço.

“O indivíduo se define, vai aos poucos “moldando” sua identidade no espaço, na relação com os objetos que ele integra. E é o espaço que vai lhe oferecer os objetos e fenômenos equivalentes aos seus referenciais internos, fenômenos esses nos quais ele vai se projetar, com os quais ele vai se identificar.”

Mas, especificamente considerando as condições estruturais do sistema penitenciário brasileiro, que diálogo pode-se pontuar dentro dessa lógica? Nesse ponto, precisamos esclarecer que quando falamos acerca das condições estruturais do sistema carcerário brasileiro, portanto, estamos falando de: superpopulação carcerária; perda do controle interno e domínio dos presídios pelas facções; precariedade de assistência à saúde; assistência material sonegada; más condições de alimentação; ausência de condições de trabalho (aos que querem trabalhar), estudos e demais instrumentos que possam atentar para a finalidade de reabilitação proposta pela Lei de Execuções Penais em seu artigo 1º; bem como, revista vexatória e visitas íntimas realizadas sem qualquer local destacado que permita a manutenção da privacidade do indivíduo e do seu parceiro ou parceira.

Dentro dessa lógica, nos parece evidente que as condições estruturais referidas influenciarão sobremaneira a pessoa do condenado, mormente diante os postulados até então apontados pela teoria da reação social, sem desconsiderar o poder da arquitetura carcerária, contudo, tais efeitos não se esgotam aí, muito pelo contrário, influenciam, sim, e, também, os chamados ‘benefícios executórios’, que mais do que benesses, constituem direitos, acaso considerado sujeito de direitos o condenado.

Nesse ponto, destacaremos apenas três exemplos, haja vista o espaço que nos é destinado.

No que diz com a progressão de regime, temos que a inexistência de vagas no regime semiaberto gera, por muitas vezes, a permanência dos condenados em regime mais gravoso, como o fechado, por exemplo, em que pese considerada a progressão por salto e a possibilidade de concessão da prisão domiciliar, ainda atacada pelo Ministério Público. A diferenciação dos percentuais para a progressão de regime, no que diz com os condenados por crime hediondo e equiparado a hediondo, produz maior tempo de permanência no sistema prisional fechado, sob a influência de todos esses efeitos já referidos, e, consigne-se que na realidade, a maior parte dos presos, quase a metade dos que compõem, por exemplo, a população do Presídio Central de Porto Alegre (entre 4.000 e 4.500), são condenados pelo delito de tráfico de drogas, crime sem violência ou grave ameaça à pessoa. E nem ingressaremos na ainda presente confecção do exame criminológico para fins de progressão de regime, em que pese à alteração produzida na LEP em 2003.

Outro ponto de intersecção é a remição, haja vista que se inexistente trabalho e condições de trabalho aos que querem laborar, impossibilitada a remição da pena e consequentemente a possibilidade de assim e quanto antes liberar-se o condenado do sistema prisional. Ampliando-se, nesses termos, os efeitos não só produzidos pela própria arquitetura prisional, mas, nos termos explorados pela reação social, na medida em que intensifico a minha interação com esse contexto e assumo cada vez mais o rótulo que me foi destinado.

Por fim, ao menos no que diz com essa coluna, também salientamos a título de exemplo, o poder configurador da reação social gerado com os procedimentos administrativos disciplinares e a sua consequente homologação, com a possibilidade de regressão de regime, alteração da data-base para a concessão de novos ‘benefícios’ legais e a perda dos dias remidos.

Por certo e, dessa forma, verifica-se que a intervenção da justiça criminal, mormente por meio da pena, aprofunda a criminalidade e potencializa a estigmatização, não só pelas condições estruturais apresentadas no panorama do sistema penitenciário brasileiro, mas, também, pela leitura destinada aos ‘benefícios’ executórios, pois cada vez que empecilhos são estabelecidos à progressão de regime, a remição da pena e a cada homologação de um PAD, aprofundamos a colagem de uma etiqueta no condenado, a qual terá nefastos efeitos sobre a sua personalidade e identidade, na medida em que, com ela, se esvai a condição de pessoa humana, e, ao assumir o rótulo de condenado, preso, delinquente e bandido, rótulo objeto de exploração por muitos, se esquece da impossibilidade de instrumentalização da pessoa humana, acaso tenhamos a pretensão de almejar uma sociedade democrática, mais justa e igual. Mas, o que será que efetivamente queremos?


REFERÊNCIAS

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

ELBERT, Carlos Alberto. Novo manual básico de Criminologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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