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Síndrome punitivista x direitos fundamentais: o que a pandemia nos revela?

Síndrome punitivista x direitos fundamentais: o que a pandemia nos revela?

Por Paulo Bruno B. Souza e Tiago Biscarde

Se em março deste ano comemorávamos o advento da Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça, hoje há muito o que se lamentar.

O fetiche encarcerador do Estado Brasileiro aperfeiçoa-se, com requintes de crueldade, ao fechar os olhos para a realidade catastrófica do nosso sistema carcerário e os imensuráveis danos à saúde da população carcerária, potencializados pelo cenário pandêmico.

Com a fatal proliferação da Pandemia do Covid-19, a garantia dos direitos fundamentais se tornou ainda mais evidente e urgente, principalmente com relação ao direito a saúde.

Movidos pela necessidade de assegurar esse direito para seus cidadãos, governantes de todo o mundo se mobilizaram na tentativa de garantir atendimento em grandes escalas, equipamentos de segurança para os profissionais, vacinas, entre outras providências necessárias ao combate à crise pandêmica. Assim, a discussão sobre direitos fundamentais voltou a ter prioridade.

O engajamento dos governantes se explica pelo fato dos Estados terem papéis fundamentais na garantia e concretização dos Direitos humanos. Hoje já é consenso a ideia de que o Estado é responsável direto na consolidação da dimensão social dos Direitos humanos, ou seja, além de proteger os Direitos individuais, ele deve implementar as condições necessárias para a garantia desses direitos.

Desta forma, podemos compreender que o Estado tem três obrigações principais: a de criar condições necessárias para o florescer dos direitos fundamentais; criar formas que impeçam ações individuais que violem a dignidade do próprio agente; e impedir que condutas individuais restrinjam a dignidade de terceiros.

Vale destacar que este dever de proteger a dignidade humana por parte do Estado não tem ressalvas com relação a indivíduos ou grupos, devendo ser garantido a todos, inclusive aos presidiários. Porém, a histórica negligência estatal com relação as penitenciárias brasileiras, faz com que praticamente nenhum direito básico seja garantido na esmagadora maioria dos presídios.

Seguindo nessa linha, em 2015 o próprio STF, no julgamento da ADPF 347, reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro se encontra em um “estado de coisas inconstitucional”, tendo em vista as condições degradantes. Sendo assim, os detentos que, já não tinham o direito a saúde assegurado antes da pandemia, passaram a preocupar ainda mais as autoridades sanitárias.

Neste contexto, em 17 de março de 2020, de forma sensata e enérgica, o Conselho Nacional de Justiça nos agracia com a Recomendação nº 62, contemplando uma série de indicações aos Tribunais e Magistrados de medidas preventivas à disseminação da Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativos.

Dentre as racionais e parabenizáveis recomendações, destaca-se a reavaliação das prisões preventivas, dando prioridade aos integrantes dos grupos de risco do coronavírus e os indivíduos encarcerados em estabelecimentos prisionais superlotados.

O encarceramento preventivo é uma medida cautelar anterior à formação de culpa estatal e recheado de aspectos inquestionáveis.

Segundo relato recente do Departamento Penitenciário Nacional, o número de presos provisórios em nosso país perfaz o estarrecedor montante de 773 mil presos, ou seja, quase 800 mil pessoas encontram-se presas no Brasil sem sequer serem condenados.

Não bastando às terríveis mazelas amargadas pela população carcerária, a Pandemia do COVID-19 eleva, exponencialmente, os riscos à integridade física dos indivíduos encarcerados, principalmente aqueles em grupo de risco, projetando danos irreversíveis, isto mesmo, a morte.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à saúde como sendo um direito fundamental, previsto no seu artigo 6º, além de definir os princípios responsáveis pela orientação das políticas de saúde. Dentre estes princípios, ficou estabelecido que, além de ser um direito dos cidadãos é, principalmente, um dever do Estado, que deve promover políticas públicas com o intuito de garantir o acesso universal e igualitário, proporcionando a redução dos riscos à saúde da população.

Nesse sentido vale pontuar que a bioética atual compreende que a definição de saúde não é mais a ideia de falta de enfermidade, e sim um entendimento mais amplo de bem-estar bio-psico-social, ou seja, compreendendo questões biológicas, mentais e sociais.

Porém, no que toca ao plano prático, o Estado vem se tornando vilão, principalmente no que tange aos indivíduos encarcerados, seja pela manutenção do encarceramento de indivíduos integrantes do grupo de risco e em periculosa exposição, seja pela negligência em assumir posturas eficientes no combate ao vírus nos estabelecimentos prisionais.

Ademais, o tratamento, muitas vezes, nada isonômico do Judiciário ao analisar os pleitos de prisão domiciliar de indivíduos em situações análogas, reforça a seletividade do sistema penal Brasileiro.

Se, de um lado, vemos o Ex-Ministro Geddel Vieira Lima e Fabrício Queiroz serem beneficiados com a concessão da prisão domiciliar, de outro lado, vemos os marginalizados socialmente continuarem segregados, mesmo em situação de elevado risco à sua saúde e vida.

Caso a morte, por conta do vírus Covid-19, de um jovem negro encarcerado por menos de 10g de maconha não nos diga nada, há de se questionar os verdadeiros males enraizados em nossa sociedade e a função da segregação prisional.

Cabe, então, refletirmos o verdadeiro custo de manter um sistema seletivo e estigmatizante em detrimento das garantias fundamentais.


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