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Visitas íntimas no sistema prisional: direito ou regalia?

O texto se inicia com um título que encerra uma ironia, pois me parece que o questionamento acerca de se tratarem às visitas íntimas no âmbito do sistema prisional enquanto direito ou regalia, não deveria sequer ser objeto de questionamento.

Entretanto, a Resolução nº 23/2021 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, que, de acordo com o artigo 64, inciso I, da LEP, tem como uma de suas atribuições enquanto órgão da execução penal, o de propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas seguranças, devendo zelar obviamente pela aplicação e execução das normas de execução penal, considerando tratar-se do primeiro órgão de execução elencado pela referida legislação, faz-nos propor o referido questionamento, na medida em que considera às visitas íntimas, no âmbito do sistema prisional, em sua normativa, enquanto regalia/recompensa.

Já de antemão afirmo, dando spolier do restante do texto, que contará com a minha argumentação técnico-jurídica acerca do tema, que entendo inconstitucional/ilegal e inconvencional a referida normativa, na medida em que a visita íntima constitui direito, sim, não apenas do privado de liberdade, sujeito de direito que é, considerando a natureza jurídica da execução penal como jurisdicional que deve ser, mas, também, de seus familiares, no caso, companheiros (as), esposos (as), parceiros (as), dado o também mandamento constitucional da preservação da convivência familiar e de seus laços, obviamente, conforme artigo 226 da Constituição Federal, o qual nos diz que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, e, sinale-se, que há muito a Corte Interamericana de Proteção dos Direitos Humanos já asseverou do dever especial de proteção por parte dos Estados em relação aos privados de liberdade, os quais se encontram sob sua custódia.

Por outro lado, é interessante ressaltar que a execução penal, no Estado Democrático de Direito, deve observar estritamente os limites da lei e do necessário ao cumprimento da pena, sendo que tudo que excede aos referidos limites contraria direitos (MARCÃO, 2005).

E nos termos do artigo 41 da Lei de Execução Penal, são direitos do preso, entre outros (haja vista tratar-se de rol meramente exemplificativo), a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados.

Além disso, insta salientar que os referidos direitos dos presos provêm de garantias que, em última análise, remontam à Constituição Federal, essa em sintonia com os direitos fundamentais, agora, já chamados de humanos, também assinalados em diversos documentos internacionais (BENETI, 1996), razão pela qual a execução penal, inserida que está em um Estado Democrático de Direito, exige respeito a essa ordem constitucional e convencional e ao seu consequente sistema de direitos e de garantias. Pois, somente assim se mostrará legítima, do contrário, instaura-se o arbítrio.

Também, muito já se discutiu no âmbito da criminologia, bem como do próprio direito penitenciário, chegando-se a conclusão acerca da imprescindibilidade da mantença dos laços sociais e familiares pelo preso que se encontra recolhido cumprindo pena, haja vista, mormente a objetivação de ‘reeducação’ e de ‘reinserção social’ da execução penal, a qual sabemos, já se mostra duvidosa pela simples segregação da pessoa e retirada do convívio social; razão pela qual a permissão de visita dos parentes e amigos próximos conta apenas com aspectos positivos, tanto na órbita psíquica, quanto física do recluso (BRITO, 2013).

Bitencourt (2001) também já atentara para o problema crítico do sexo no interior das prisões, aduzindo para consequências negativas oriundas da privação de relações sexuais e da repressão do instinto sexual, como: problemas físicos e psíquicos; deformação na autoimagem; destruição da relação conjugal do recluso; o onanismo, como alternativa à repressão sexual.

Sabe-se, outrossim, que um dos efeitos da prisionização é o sexual, tanto que a instituição das visitas íntimas sobrevieram como resguardo das relações familiares, considerando um dos objetivos da execução penal (vide artigo 1º da LEP) que é a efetiva reintegração social e a superação de doenças infecto-contagiosas e de casos de violência sexual, como as chamadas ‘curras’.

Dessa forma é que diversos autores acordam, que, para além da manutenção dos laços sociais e familiares, através da visita, conforme determina a lei, é de extrema importância à ocorrência da chamada visita íntima, a qual, para Muakad (1998) não se mostra como solução satisfatória ao problema sexual encontrado nas prisões, haja vista revelar-se discriminatória, por estender-se apenas aos cônjuges e companheiras; a sua regularidade não atender aos anseios sexuais individuais de cada recluso; não considerar a moral e a psique da própria mulher; bem como por questão econômica, uma vez que essas visitas exigem a construção de local apropriado, bem como de mais funcionários para controle, além de médicos, com o intuito de evitar-se a propagação de doenças.

É certo que o preso tem direito a receber visitas, conforme já verificamos, entretanto, e, infelizmente, a lei não explica detalhadamente quais são os termos da visita a que o preso tem direito (BRITO, 2013). Dessa forma, é comum que cada Estado tenha suas regras ditadas pelas Secretarias responsáveis, e, embasadas no normativo expedido pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, acima mencionado, o que tem levado diversos Estados da Federação, através das suas administrações prisionais, a adotarem normativas que condicionam a realização das visitas íntimas, entendendo estas enquanto regalia/recompensa.

Aliás, há um movimento de maior fechamento do cárcere pós pandemia, o qual tem gerado diversos projetos de lei nas Assembleias Legislativas dos Estados, que tentam, inclusive, vedar a realização de visitas íntimas, em frontal descompasso a própria evolução dos sistemas penitenciários e a adoção do sistema progressivo pela Constituição e Lei de Execução Penal.

Sinale-se que a Resolução, dessa forma, condiciona o exercício de um direito a colaboração com a disciplina e como reflexo de sua dedicação ao trabalho (sendo que a realidade nos mostra que poucos privados de liberdade conseguem ter acesso ao trabalho, devido a superlotação e a ausência de oferta), violando, consequentemente, o próprio artigo 3º da LEP, o qual nada mais o faz do que pontuar a aplicação do princípio da isonomia no âmbito da execução penal.

O Supremo Tribunal Federal, nos autos da medida cautelar da ADPF nº 347, já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, acentuando e acenando, obviamente, para a inexistência e a precariedade no fornecimento das assistências asseguradas pela Lei de Execução Penal.

Entretanto, não pode o Estado, aqui, leia-se, administrações prisionais estaduais, valer-se dessa normativa, operando uma reversão ideológica, posto os considerandos da normativa, que reprisam as Regras de Mandela, as Mínimas das Nações Unidas de Tratamento de Reclusos, de Bangkok e os Princípios de Yogyakarta, além de decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, num equívoco desconhecimento de interpretação do direito internacional dos direitos humanos, na medida em que se vale de uma decisão que se aplica a um Estado, com regras de direito interno próprias, para restringir direitos; no sentido de que a ausência de local adequado, seguro e higiênico à realização das visitas, estaria a preservar o direito e a integridade dos familiares, como anteparo a negativa de um direito, condicionado enquanto recompensa pelo CNPCP, quando não se tem notícia acerca da aplicação dos recursos do FUNPEN, também descontigenciados pelo STF na medida cautelar da ADPF nº 347, que poderiam ser investidos a tanto, considerando, inclusive, a também atribuição do CNPCP acerca da normatização da arquitetura prisional, a qual, deve por certo inserir esses espaços, até para fins de fiscalização por parte dos Tribunais de Contas, haja vista o disposto em lei.

De acordo com Lopes Júnior (2007), o processo de execução é atividade que exige, na sua plenitude, a atuação jurisdicional, pois, a instrumentalidade inerente ao processo está fundada na tutela judiciária dos direitos subjetivos do sentenciado e, também, voltada para a efetividade do comando concreto da sentença penal condenatória.

Ocorre que embora da LEP conste uma matriz jurisdicional, peca a mesma, segundo o referido autor, pela inquisitorialidade do sistema concebido, podendo-se dizer que atualmente o grande problema do processo penal está nos seus dois extremos: no inquérito policial e na execução da pena, dado o ranço administrativo e inquisitivo de ambos, os quais acabam por abandonar o sujeito passivo a toda sorte (LOPES JÚNIOR, 2007).

Esse ensaio é um desabafo e uma suplica a todos os atores que labutam no sistema prisional a fim de se insurgirem contra esta normativa, pois, conforme já asseverei em outras oportunidades, não é possível se fazer um sistema prisional só com disciplina, porque mais cedo ou mais tarde a casa cai e a conta a pagar é altíssima demais. Continuo insistindo, o calcanhar de Aquiles da segurança pública é o sistema prisional, e enquanto não se olhar para ele dessa forma, tenciono a dizer da impossibilidade de reversão do estado de coisas inconstitucional, já declarado pelo STF.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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