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Prisão: a melhor punição?

Por Mariana Py Muniz Cappellari

O nascimento da prisão moderna, tão bem explorado por Foucault em Vigiar e Punir, já deitava raiz no período humanitário, o chamado século das luzes, quando clássicos, como Beccaria, por exemplo, que era um contratualista, por que acreditava no contrato social; um utilitarista, por que acreditava no efeito preventivo destinado a pena; e um humanitário, pois se voltava contra as penas do antigo regime; já realizava uma crítica severa da legislação penal, na medida em que defendia a proporcionalidade da pena ao crime, através da avaliação das circunstâncias pessoais do acusado, revelando-se aquela menos cruel ao seu corpo, eis que a ideia de prevenção que se buscava com a pena, no seu enfoque, é mais importante do que a retribuição propriamente dita, uma vez que essa prevenção se revelava na certeza de uma punição, discurso mais do que atual, digamos, ainda que produzido no ano de 1764.

Por outro lado, também é interessante acentuar que nesse mesmo período, John Howard, que era considerado um reformador, e que acabou inspirando uma corrente penitenciarista preocupada na construção de estabelecimentos apropriados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, já denunciava as condições deploráveis das prisões inglesas, aduzindo para o fato de que as mesmas não contavam com regime higiênico, alimentar e assistência médica que permitissem cobrir as necessidades elementares de um ser humano.[1] Qualquer semelhança com a nossa realidade vigente não é mera coincidência!

Com o passar do tempo, o Direito tratou de buscar uma fundamentação racional à pena, pretendendo nada mais nada menos com isso naturalizar as consequências perversas e negativas da pena como realidade concreta, de acordo com Salo de Carvalho.[2] O fato é que daí advém às chamadas teorias absolutas, relativas e mistas. As teorias absolutas, com inspiração em Hegel e Kant, viam a pena como uma indenização pelo mal praticado, tratando-se de mera retribuição, portanto, não constituindo uma justificativa da pena em si mesma, tanto que empiricamente indemonstrável a sua eficácia, já que estruturadas na vingança, algo extremamente questionável de adoção, quanto mais por um Estado que hoje se diz democrático de direito.[3]

As teorias relativas, por outro lado, sustentam que a pena é só um meio para obter fins que transcendam ao castigo, por isso, utilitaristas, eis que se subdividem em prevenção geral, a qual conta com uma função negativa, que é dissuadir, ou seja, fazer com que as pessoas não cometam delitos, por que apenados com pena de prisão, por exemplo; e uma função positiva, que é reforçar a confiança das pessoas na ordem jurídica, com a aplicação de uma pena a quem for autor de um crime; e, ainda, prevenção especial, a qual também possui uma função negativa, qual seja neutralizar esse indivíduo apenas; e uma função positiva, a chamada recuperação, a qual pode se dar pelo tratamento correcional da ressocialização. Por fim, as mistas, cujo nome já nos diz que têm por finalidade misturar o castigo aos fins correcionais.[4]

Interessante pontuar, no entanto, que a dita justificação racional dada à teoria relativa não convence. Em 2005, quando se discutia a constitucionalidade do regime integral fechado proposto pela Lei nº 8.072/90, o ILANUD[5] realizou uma pesquisa com o intuito de verificar a Lei dos Crimes Hediondos como instrumento de política criminal, concluindo que a lei não tratou de reduzir os crimes agora intitulados como hediondos, pelo contrário, os índices desses crimes ou aumentaram ou permaneceram com os mesmos percentuais de cometimento. No referido relatório, a pesquisa dá conta, através de entrevistas realizadas com os próprios presos, que a lei não inibe a prática de crimes, logo, cai por terra o argumento dissuasório proposto pela prevenção geral negativa. Aliás, o que o relatório dá conta é que a Lei dos Crimes Hediondos contribuiu, foi isso sim, é para o aumento da população carcerária.

E o que dizer da prevenção especial positiva? Bom, essa se alicerça num ‘neo’ retributivismo, encontrando adoção no marco do Direito Penal do Inimigo de Jakobs, por exemplo. Resta-nos, então, a prevenção especial. Valendo asseverar que a sua função negativa, qual seja, a mera neutralização desse indivíduo dito ‘periculoso’ e ‘indesejável’ é o que exsurge, haja vista que a função dita positiva, alicerçada na ressocialização, há muito tempo já foi objeto de refutação por parte da Criminologia, quando Goffman, por exemplo, ao definir a instituição total, simbolizando a mesma pela barreira à relação com o mundo exterior, dá conta de que a permanência nesse local por um longo período de tempo revela um processo de desculturação, sofrendo o indivíduo com o seu rebaixamento, humilhação e degradação pessoal, ensejando a mortificação do eu.[6] E isso que nem trazemos à tona as condições estruturais dos presídios brasileiros, porque acreditamos desnecessárias, valendo relembrar dos constantes acionamentos do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos nesse ponto, com casos que vão desde Urso Branco, Araraquara, até Presídio Central de Porto Alegre e Pedrinhas.

Não é por menos que se tem a prisão como um fator criminógeno, já que em vez de frear a delinquência, conforme salienta Bitencourt,[7] parece estimulá-la, convertendo-se em instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidade, eis que a maioria dos fatores que dominam a vida carcerária imprime a esta um caráter criminógeno, tais como os fatores materiais (deficiências de alojamento, higiene, alimentação, saúde); psicológicos (o estudo dos sistemas penitenciários já nos dá conta da imensidão de psicoses geradas pelo regime celular, por exemplo, não se desconhecendo a aprendizagem do crime que proporciona); sociais (a prisão origina um sistema social anômalo intramuros, com reflexo de uma subcultura carcerária, muito bem exemplificada nas facções formadas no interior do cárcere) e sexuais (já que de acordo com Bitencourt, a repressão do instinto sexual propicia a perversão da esfera sexual e da personalidade do indivíduo).

Entretanto, mesmo se sabendo de tudo isso, parece que ainda colocamos forte crença na prisão como melhor punição. As últimas semanas que se passaram nos deram exemplos disso, não só pela ampliação, quase que constante dos crimes considerados como hediondos, chegando-se a se inserir no seu rol a lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º, do CP) e a lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º, do CP – crime essencialmente preterdoloso, diga-se de passagem, ou seja, qualificado pelo resultado, o qual advém a título de culpa e não de dolo), mas tão somente quando praticadas contra autoridade ou agente integrante das Forças Armadas ou das Polícias Federal, Civil e Militar, ou, ainda, integrante do Sistema Prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra o seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, portanto, deixando a legislação transparecer o nítido caráter qualificador da vítima e excludente, por outro lado, daquela maior parcela que morre diariamente no brasil.

Mas, também, pela aprovação, no âmbito do Senado Federal, na terça-feira passada, de projeto de lei que pretende alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, criando um regime especial (?) que deverá alcançar jovens na faixa dos 18 aos 26 anos de idade que estiverem envolvidos, quando menores, em crimes graves. Caso em que o período de internação (leia-se: restrição da liberdade, nos moldes da pena privativa de liberdade) poderá durar até dez anos. Ainda que assegurada a separabilidade e o cumprimento em estabelecimento específico ou em ala especial (detalhe que deve ser pontuado, tais estabelecimentos precisarão ser construídos), o fato é que tal proposta para além de desnaturar o regime implantado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de socioeducação deixa transparecer o seu caráter meramente neutralizador, sem se preocupar com o impacto que um maior tempo de permanência dentro do sistema socioeducativo pode gerar, como a superlotação, por exemplo, já sentida em muitos Estados da federação brasileira, além de desprezar como se dá a passagem do tempo para um adolescente, a qual difere de um adulto, basta nos lembrarmos dos nossos 15 anos de idade e de como lentamente o tempo se esvaía e como hoje galopantemente se esvai.

Relatórios[8] produzidos no ano passado, em 2014, portanto, pela Organização das Nações Unidas – ONU e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, acerca das prisões brasileiras, dão conta de que há no nosso solo uma cultura autoritária que ainda crê na prisão como o combatente mais eficaz do crime. Entretanto, depois de todos os questionamentos e proposições apresentadas acerca da falência completa da pena de prisão, ponho-me a questionar, será que ainda apostamos tanta confiança assim na prisão? Ou, por detrás de tudo isso o que existem são outros interesses? Como o controle e a neutralização de uma população dita ‘indesejada’ e a mera manutenção do status quo de uma minoria? Vale refletir!

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[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[2] CARVALHO, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013.

[3] Idem.

[4] ELBERT, Carlos Alberto. Novo Manual Básico de Criminologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

[5] Disponível em: <http://www.prsp.mpf.mp.br>. Acesso em: jul. 2015.

[6] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

[8] Disponível em: <http://www.conectas.org>. Acesso em: jul. 2015.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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