A vítima e a lei penal
A vítima e a lei penal
Em algumas passagens de sua belíssima obra, o professor Cezar Bitencourt (2018, p. 1009) se refere à vítima como o “primo pobre do processo criminal”.
Trata-se de expressão que bem traduz os estados de (des)amparo e (des)assistência aos quais a vítima é, frequentemente, submetida.
Tal quadro serve, inclusive, de sustentáculo para diversos ataques diariamente invocados contra os discursos garantistas de respeito aos Direitos Humanos dos delinquentes.
Em contexto diverso, mas, ainda assim, bastante aplicável ao presente excerto, há uma célebre frase, proferida por Fran von Liszt, que perfeitamente resume o que até aqui se pretendeu dizer:
O Código Penal é a Carta Magna do delinquente. Não protege a ordem jurídica, nem a comunidade, senão o indivíduo que contra esta obrou. Dispõe para ele o direito a ser castigado só se concorrem os requisitos legais e dentro dos limites estabelecidos pela lei…” (Pesquisa Sociológica e Antropológica sobre o Significado Fundamental do Direito Penal – Über den Einfluss der soziologischen und anthropologischen Forschungen auf die Grundbegriff des Strafrechts, en Strafrechtliche, II. Ano: 1893.)
Partindo de um posicionamento semelhante ao sustentado por Liszt, há quem defenda serem as leis penais atuais uma conquista liberal de proteção do indivíduo (delinquente ou não) frente ao inexorável poder punitivo estatal.
Daí a importância de condicionarmos esse poder punitivo à observância de uma série de regras. Todas integrantes do devido processo penal (LOPES JR., 2019, p. 35).
A partir disso, surge o seguinte questionamento: “se as leis penais e processuais penais são instrumentos de proteção dos delinquentes, quem é que protege a vítima”?
Havendo prática delituosa, o Estado faz despertar os seus interesses reparadores e retribuidores do mal injustamente provocado.
Assim, sendo o Direito Penal e o Processo Penal ramos do Direito Público, penso que os mencionados interesses estatais devem ser dirigidos à coletividade, à sociedade como um todo, não ficando restritos, portanto, à íntima esfera de proteção da vítima.
Ou seja, adotando-se pressupostos mais liberais, a reparação da vítima não é função do Direito Penal e do Processo Penal. Tal reparação deve ser direcionada em favor da sociedade (que também tem os seus valores fundamentais ultrajados sempre que alguém viola a norma penal).
Mas e quanto à vítima? Fica desamparada?
A resposta é negativa.
O fato de o Direito Penal e o Processo Penal serem, de acordo com a visão aqui defendida, instrumentos de proteção do delinquente, não significa que não possa a vítima buscar a reparação de seus interesses privados em outros ramos do Direito.
Daí a importância do Direito Civil (ramo do direito privado), sobretudo de suas disposições atinentes à Responsabilidade Civil.
Nesse sentido, segundo determina o art. 935 do Código Civil vigente, a responsabilidade civil independe da responsabilidade criminal, não se podendo mais questionar acerca da existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor (quando estas questões já estiverem decididas no juízo criminal).
Inclusive, há casos em que a vítima sequer precisará aguardar o término do processo penal, podendo ajuizar a ação cível que entenda pertinente de forma anterior ou mesmo simultânea ao trâmite dele (CPP, art. 64).
Basta pensarmos no caso de uma vítima de lesões corporais (ocasionadas por erro médico) que precisa de recursos para o seu tratamento e não pode aguardar o término do feito na justiça criminal (LOPES JR., 2019, p. 234).
Contudo, por questões de lealdade acadêmica, é preciso dizer que o legislador brasileiro não seguiu a aqui defendida necessidade de separação entre as pretensões punitiva e indenizatória. Preferiu adotar uma modelo híbrido.
Nesse sentido, conforme indica o art. 387, IV, do CPP, o juiz (criminal), ao proferir sentença, fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando-se os prejuízos sofridos pelo ofendido.
Tendo em vista que o dispositivo legal em comento indica a fixação de “valor mínimo”, não há óbice para que a vítima, por meio de liquidação para apuração dos danos efetivamente sofridos, possa buscar um valor maior na esfera cível (CPP, art. 63, parágrafo único).
Em outra oportunidade, trataremos, com mais afinco, da chamada Ação Civil Ex Delicto, prevista no Código de Processo Penal (art. 63 ao 68) e que, segundo Pacelli (2018, p. 159), “outra coisa não é senão o procedimento judicial voltado à recomposição civil causado pelo crime”.
O que se pretendeu esboçar neste curto e precioso espaço é a necessidade de (re)pensarmos o atual modelo de cumulação das pretensões punitiva e indenizatória. Não se nega que, em geral, falta o adequado zelo para com a figura da vítima.
Contudo, na visão aqui defendida, tal cuidado não é da pertinência do Direito Penal e do Processo Penal, sendo perfeitamente compatível com os interesses privados assegurados pelo Direito Civil (basta atentarmos para a teoria da tipicidade conglobante).
Há que se fugir de unificações (pouco metodológicas) dessas disciplinas, sob pena de provocarmos severa e irreparável confusão, haja vista serem elas dotadas de institutos próprios e, muitas vezes, distintos.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 24. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. E-book.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2019.
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2018. E-book.
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